"As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas. Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou. Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada."

Para a Paula, o Pedrinho e a Soraia
Dedicatória em "LILI INVENTA O MUNDO", Editora Mercado Aberto, 5ª Edição, Porto Alegre, 1985

MÁRIO QUINTANA nasceu em Alegrete, RS, em 30 de julho de 1906 e faleceu em Porto Alegre, RS, em 5 de maio de 1994. Durante toda a sua vida foi poeta. Seu jeito de menino matreiro acompanhou-o por todos os seus oitenta e oito anos pródigos de belas crônicas, versos, frases, pensamentos e poesias. Criou personagens - como o Anjo Malaquias - e fez-nos rir, chorar e nos emocionar. Este é o Quintana reverenciado neste Blog: o nosso anjo-menino, o nosso maior poeta.


* * *

Blog criado no dia 15 de janeiro de 2008

Fazia tempo que eu pensava em criar um blog dedicado a Mário Quintana, poeta pelo qual guardo venerável respeito e admiração. Entretanto, se recorrermos aos sites de busca na internet, encontraremos dezenas de páginas que homenageiam este personagem tão querido de todos nós, cada um com o seu jeito mas todos voltados para a transcrição de sua obra magnífica e de sua biografia inigualável. O meu seria, apenas, mais um, entre tantos e, certamente, muito modesto. Relutei muito. Hoje, dia 15 de janeiro de 2008, enfim, decidi aceitar o desafio que fiz a mim mesmo e eis aqui "SAPATOS E CATAVENTOS", com o qual presto a minha gratidão a Mário Quintana por ter vivido entre nós. Para mim não basta ler os seus poemas, suas crônicas e citações nos livros de minha biblioteca. Acho que transcrevendo-os eles permanecem mais vivos e palpitantes, dando-me a oportunidade de compartilhar com outras pessoas o prazer, a alegria e a emoção que eles transmitem. Assim, meu querido Poeta, este blog é teu. É a única coisa que posso fazer para te dizer "obrigado".

O QUE HÁ NESTE BLOG?

Neste blog encontraremos esquinas, relógios, anjos e telhados. Nele haverá escadas e degraus, canções, ruas e ruazinhas, rãs, sapos, lampiões e grilos. Muitas vezes surgirão gatos, solidão, mortos e defuntos, pássaros, livros, noites e silêncios, ventos, reticências e fantasmas. E poesia, quando o Poeta abrir a sua alma e deixar que do mais íntimo do seu ser, brote em abundância todos os sentimentos que os comuns mortais escondem ou dissimulam por medo de se mostrarem como são. Então ele falará de velhos casarões, de calçadas, janelas, armários, jardins, luar e muros floridos. O Poeta contará historias da cidade que ama, de espelhos, de quartos, bondes e sapatos. De brinquedos, barcos, arroios, cataventos e guarda-chuvas. E de seus baús resgatará os retratos das princesas e das amadas, numa ciranda infindável de doces e ternas reminiscências que nos encantam e comovem enquanto brinca com suas girândolas. E a homenagem singela de um admirador ao Poeta inigualável, sempre externando candura e encantamento enquanto nos revela em plenitude a ternura de seus poemas.

25 janeiro 2008

- XXXIV -

- Desenho da capa de "Esconderijos do Tempo", Ed. L&PM, 1981 -



Bilhete


Se te me amas, ama-me baixinho.
Não o grites de cima dos telhados.
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem que ser bem de vagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


A Casa Grande


...mas eu queria ter nascido numa dessas casas de meia-água
com o telhado descendo logo após as fachadas
só de porta e janela
e que tinham, no século, o carinhoso apelido
de cachorros sentados.

Porém nasci em um solar de leões.
(... escadarias, corredores, sótãos, porões, tudo isso...)
Não pude ser um menino da rua...
Aliás, a casa me assustava mais do que o mundo, lá fora.
A casa era maior do que o mundo!
E até hoje
- mesmo depois que destruíram a casa grande –
até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos...


O poema interrompido

A lâmpada abre um círculo mágico sobre o papel onde escrevo. Sinto um ruído como se alguém houvesse arremessado uma pequenina pedra contra a vidraça, ou talvez seja uma asa perdida na noite. Espreguiço-me, levanto-me e, cautelosamente, escancaro a janela. Oh! como poderia ser alguém chamando-me? Como poderia ser um pássaro? Na frente do quarto, acima do quarto, por baixo do quarto, só havia a solidão estrelada... Quem faz um poema não se espanta de nada. Volto ao abrigo da lâmpada e recomeço a discussão com aquele adjetivo, aquele adjetivo que teima em não expressar tudo o que pretendo dele...


(“Esconderijos do Tempo” – L & P M Editores, 1981)

24 janeiro 2008

- XXXIII -

- SAPATO FLORIDO - 

O POEMA 

    Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu nada. Para que? Se por ali já havia passado o frêmito e o mistério da vida... 


A ADOLESCENTE 

    Vai andando e vai crescendo. É toda esganifrada: a voz, os gestos, as pernas... Antílopes! Vejo antílopes quando ela passa! Pois deixa, passando, um friso de antílopes, de bambus ao vento, de luas andantes, mutáveis, crescentes...

ENVELHECER


    Antes, todos os caminhos iam.
    Agora, todos os caminhos vêm.
    A casa é acolhedora, os livros poucos.
    E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.


QUE HAVERÁ NO CÉU?

    Se não houver cadeiras de balanço no Céu... que será da tia Élida, que foi para o Céu?

CÂNTICO DOS CÂNTICOS


    Maria, com um vinco entre as sobrancelhas, escolhe o segundo prato. Depois sorri-me deliciosamente. Como não encantar-me? Como não comparar-me a Salomão? “Sustentai-me (diz-lhe a Sulamita), sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, que desfaleço de amor.”

ESTÁ NA MESA 


    Vem de dentro um rumor de pratos e talheres. Alguém põe a mesa. Vovô enrola um último cigarro, ao sereno. Lili vem brincar mais perto da porta. De misteriosas andanças, aponta, à esquina, o cachorro da casa.

    “Está na mesa!”

    Agora todos se reunirão em torno à sopa fumegante.

    E em vão a noite apertará o cerco primitivo. E em vão o antigo Caos, nos confins do horizonte, ficará rondando como um iguanodonte esfomeado...

MENTIRAS 

    Lili vive no mundo do Faz-de-conta... Faz de conta que isto é um avião: Zzzzuuu... Depois aterrissou em pique e virou trem: Tuc tuc tuc tuc... Entrou pelo túnel, chispando. Mas debaixo da mesa havia bandidos: Pum! Pum! Pum! O trem descarrilou. E o mocinho? Onde é que está o mocinho? Meu Deus! Onde é que está o mocinho?! No auge da confusão levaram Lili para a cama, à força. E o trem ficou tristemente derribado no chão, fazendo de conta que era mesmo uma lata de sardinha. 


* * * 


(De “Sapato Florido” em “Prosa & Verso”, Editora Globo, Porto Alegre, 1978)

- XXXII -


A surpresa de ser

A florzinha
Crescendo
Subia
Subia
Direito
Pro céu
Como na História de Joãozinho e o Pé de Feijão.

Joãozinho era eu
Na relva estendido
Atento ao mistério das formigas que trabalhavam tanto...

E as nuvens, no alto, pasmadas, olhando...

E as torres, imóveis de espanto, entre vôos ariscos
Olhavam olhavam...

E a água do arroio arregalava bolhas atônitas
Em torno de cada pedra que encontrava...

Porque todas as coisas que estavam dentro do balão azul daquela hora
Eram curiosas e ingênuas como a flor que nascia
E cheias do tímido encantamento de se encontrarem juntas,
Olhando-se...


Dança

A menina dança sozinha
por um momento.

A menina dança sozinha
com o vento, com o ar, com
o sonho de olhos imensos...

A forma grácil de suas pernas
ele é que as plasma, o seu par
de ar,
de vento,
o seu par fantasma...

Menina de olhos imensos,
tu, agora, paras,
mas a mão ainda erguida
segura ainda no ar
o hastil invisível
deste poema!


(“De “Nariz de Vidro” – Editora Moderna, São Paulo, 1984)

- XXXI -


Tudo tão vago...

Nossa Senhora
Na beira do rio
Lavando os paninhos
do bento filhinho...

(de uma cantiga de ninar)


Tudo tão vago... Sei que havia um rio...
Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...

O Menino dormira... Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu... que ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!...


Estou sentado sobre a minha mala

Estou sentado sobre a minha mala
No velho bergantim desmantelado...
Quanto tempo, meu Deus, malbaratado
Em tanta inútil, misteriosa escala!

Joguei a minha bússola quebrada
Às águas fundas... E afinal sem norte,
Como o velho Sindbad de alma cansada
Eu nada mais desejo, nem a morte...

Delícia de ficar deitado ao fundo
Do barco, a vos olhar, velas paradas!
Se em toda parte é sempre o Fim do Mundo.

Pra que partir? Sempre se chega, enfim...
Pra que seguir empós das alvoradas
Se, por si mesmas, elas vêm a mim?

(De “A Rua dos Cataventos” em “Prosa & Verso”, Ed. Globo, 1978)

- XXX -


I – Da Observação

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

III – Do Estilo
Fere de leve a frase... E esquece... Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.


IV – Da Preocupação de Escrever

Escrever... Mas por que? Por vaidade, está visto...
Pura vaidade, escrever!
Pegar da pena...Olhai que graça terá isto,
Se já se sabe tudo o que se vai dizer!...

VIII – Dos Mundos
Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.


XI – Das Corcundas

As costas de Polichinelo arrasas
Só porque fogem das comuns medidas?
Olha! Quem sabe não serão as asas
De um Anjo, sob as vestes escondidas...


XIV – Do Mal e do Bem

Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa, na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá?


(De “Espelho Mágico” em “Poesias”, Editora Globo, 1975)

22 janeiro 2008

- XXIX -

- PÉ DE PILÃO -



O pato ganhou sapato,
Foi logo tirar retrato.

O macaco retratista
Era mesmo um grande artista.

Disse ao pato: “Não se mexa
Para depois não ter queixa”.

E o pato, duro e sem graça
Como se fosse de massa!

“Olhe prá cá direitinho:
Vai sair um passarinho”.

O passarinho saiu,
Bicho assim nunca se viu.

Com três penas no topete
E no rabo apenas sete.

E como enfeite ele tinha
Um guizo em cada peninha.

Fazia tanto barulho
Que o pato sentiu engulho.

Pousou no bico do pato:
- Eu também quero retrato!

- No retrato saio eu só,
Prá mandar a minha vó!

A discussão não parava
E cada qual mais gritava.

Passa na rua um polícia.
“Uma briga? Que delícia!”

O polícia era um cavalo
Montado noutro cavalo.

Entra como um pé de vento
Prende tudo num momento.

“Hão de ficar vida e meia
Descansando na cadeia”.

“Ah! Ah! Ah!...” ri ele assim.
E o cavalo: “him! him! him!...”

A avó do pato é uma fada
Que ficou enfeitiçada.

Nunca, nunca envelhecia,
Era loira como o dia.

Ai, que linda que era ela!
E agora seca e amarela.

Parece passa de gente,
Não tem cabelo nem dente.

Vou num instante contar
Como pôde assim mudar.

Lá na Floresta Encantada
Mora a Fada Mascarada.

Ninguém direito a conhece,
Pois sempre outra parece.

Conforme lhe dá no gosto,
Cada dia usa um rosto.

É que é feia, feia, feia...
Como ninguém faz idéia!

Quando no espelho se olhava,
O espelho logo rachava.

Se olhava um rio, - ora essa!
Corria o rio mais depressa!

E não sei se já lhe disse
Que a vó do pato era Alice.

Ora, um dia, Alice vinha
Pela floresta sozinha.

Vendo-a, a Fada Mascarada
Voa à casa da coitada.

O pato, naqueles dias
Era menino, o Matias.

“Olha, menino, o que eu trouxe!”
E lhe mostra um lindo doce.

Ele, guloso e contente
Finca o dente no presente.

Vai falar. Mas que é que há?
Só pode dizer quá... quá...

Pois o menino tão belo
Virou patinho amarelo.

Chega a avó. E vejam só:
A Fada lhe atira um pó.

Nem havia o pó sentado,
Estava tudo mudado.

Num segundo a pobre Alice
Toda encolheu de velhice.

Mal pode andar. Chama então
Seu neto do coração.

Vem um patinho: quá? quá?
Nenhum compreende o que há.

E pela floresta escura
Vão um do outro à procura.

E tanto andou o patinho
Que perdeu o seu caminho.

Vai seguindo, estrada fora,
Até o romper da aurora.

Chega à cidade. Há um regato.
Que alegria para um pato!

Matias põe-se a nadar
Sem mais nada recordar.

Passa um grupo de meninas.
É cada qual mais traquinas.

- Um pato! – gritam em coro.
- Que lindo patinho de ouro!

Rosa, a filha do Prefeito,
Agarra-o com todo o jeito.

Comida e casa lhe dá
Diz o patinho: quá, quá.

Rosa tem um professor
Chamado Dom Galaor.

Se o professor ergue o dedo,
Rosinha treme de medo

E quer que o mundo se acabe,
Pois a lição nunca sabe.

Enquanto o mestre falava
O pato, sério, escutava.

Tanto assim que já sabia
Muita história e geografia.

Porém, antes de mais nada,
O seu forte era a taboada.

Num dia de sabatina
Que pena dava a menina!

Quanto é sete vezes nove?
E rosinha nem se move.

Mas o pato, desta vez,
Assopra: sessenta e três.

E ele mal acreditava:
Nem sabia que falava!

No jardim à tardezinha
Chega sempre uma andorinha.

Tem por nome Margarida
E passa a voar toda a vida.

Nada no mundo lhe escapa:
É como se fosse um mapa.

A casa de dona Alice?
Já vi do alto... ela disse.

Margarida! – exclama o pato
- Leva-lhe, então, meu retrato.

“Sou eu mesmo!” Escrevo atrás
E o resto lhe contarás.

Ora, o pato, finalmente,
Era um bicho meio gente.

Queria tirar retrato,
Mas ao menos de sapato.

Deu-lhe Rosa uns sapatinhos
Que eram mesmo uns amorinhos

E lhe disse: “Tem cuidado,
Pois são do meu batizado”.

E no que deu tal história,
Tem-no vocês na memória.

Vejamos como eles são
A caminho da prisão.

Nesta ordem, pela estrada,
Vai seguindo a bicharada:

Bem atrás, o passarinho,
Atado ao pé do vizinho,

Depois, Matias, unido
Ao macaco desgranido

E este devidamente
Preso ao cavalo da frente.

Quanto ao cavalo de cima
Procura no ar uma rima

(Pois compunha uma balada
Para a sua namorada).

Comida? Nem pra cheirar
E é preciso andar, andar.

Muito além daquela serra
Fica a prisão que os aterra.

Para o polícia, isto sim,
É que não falta capim.

A pança ronca faminta,
O passarinho tilinta.

E segue a turma encordoada,
Erguendo a poeira da estrada.

Mas algo acontece enfim,
Só por causa do tlim-tlim.

E entra nova personagem
Para dar gosto à vigem.

Uma cobra cascavel
Bicho enganoso e cruel

E que ante as outras faz gabo
De ter um guizo no rabo.

Essa cobra amaldiçoada,
Em um galho encoscorada,

Quase que tomba do galho
Ouvindo o som do chocalho.

“Que lindos guizos!” – diz ela
E de inveja se amarela.

“Eu jamais conseguiria
Tão bonita melodia...

Pelos dois chifres do Diabo!
De meu rival vou dar cabo”.

E com perigo de vida,
Segue a turma distraída...

E o repelente animal
Prepara o bote mortal.

O macaco retratista,
Que tem bom golpe de vista,

Vê a cobra e pensa: hum!
Vou matar esse muçum...

Passa ao alcance do galho,
Pega a cobra do chocalho.

Depois torce a desgraçada,
Tal e qual roupa enxaguada.

E a cobra, de cabo a rabo,
Entrega a alma ao Diabo.

E o macaco desgranido
Tem uma idéia, o sabido...

Os dedos no bolso mete,
Sai do bolso um canivete.

Corta o chocalho da cobra
E no chão atira a sobra...

Também corta, com perícia,
Ao cavalo do polícia,

A corda que o liga aos dois,
Prende-lhe o guizo depois.

Os cavalos vão seguindo,
Vão seguindo e vão ouvindo,

Por artes de tal manobra,
Os guizos da extinta cobra.

E continua o de cima
Em procura de outra rima:

“Olhar pra trás não preciso,
Enquanto escuto esse guizo...”

Assim pensa o chichisbéu,
Fazendo versos ao léu,

Enquanto os presos se vão,
Vai rimando o paspalhão...

E nisto o céu escurece,
Pois, como sempre, anoitece.

E eis que à beira da floresta
Há uma capela modesta

Que aos passantes causa dó
Por ter uma torre só:

É como uma vaca mocha
Ou uma pessoa coxa...

Por fé, ou outros motivos,
Entram nela os fugitivos.

Que paz que sentem, enfim:
Será que o Céu é assim?

No altar, Nossa Senhora
Tem um ar tão bom agora,

Um ar tão bom e paciente
Que parece a mãe da gente.

Nos braços mostra o Menino
Rechonchudo e pequenino.

O Menino tem na mão
Um chocalho sem função.

Como fizeram, também,
O burro e o boi em Belém,

Os bichos eu ali chegaram
Humildemente o adoraram

E, para a noite passar,
Deitaram-se atrás do altar.

O passarinho, coitado...
Que bicho mais assustado!

Basta zumbir um mosquito,
Já ele desperta, aflito!

Agora mesmo acordou.
Será que ouviu ou sonhou?

Vem um vulto de mansinho...
Nem respira o passarinho!

É um vulto negro e embuçado,
Negro e mal intencionado!

Vem roubar, o sacripanta,
O manto da Virgem Santa,

O rico manto azulado,
A ouro e prata bordado.

Vai o vulto pôr-lhe o dedo...
E o passarinho – ai que medo!

Todo tilinta, tlim, tlim,
Na tremedeira sem fim.

O ladrão, em desatino,
Pensa que é o Santo menino

Que o seu chocalho sacode,
Vai fugindo como pode.

E o passarinho, feliz,
Agita as asas e diz:

“No mundo não há bandido
Que possa com meu tinido!”

Como um herói, adormece...
E nem nota o que acontece...

Uma velha... quem é ela?
Vem entrando na capela.

Toda curvada e gemendo,
Pra si mesma vai dizendo:

“Quem me dera ter na mão
Minha vara de condão!

Fui roubada e enfeitiçada,
Já não posso fazer nada...

No estado em que estou agora
Só mesmo Nossa Senhora!

Sem feitiços nem varinhas,
A Rainha das Rainhas

Com a graça celestial
Põe fim a tudo que é mal.

E eu não quero ser mais fada
E não desejo mais nada

Senão achar meu netinho.
Onde é que estás, pobrezinho?

E de cansaço adormece
E nem nota o que acontece...


* * *

Quando acorda – que alegria!
Matias lhe dá bom dia.

É ele, outra vez menino,
Com seu sorriso ladino!

E ela está em pleno viço,
Como antes do feitiço!

Agora, já não é fada,
Vive a bordar, sossegada.

E como qualquer senhora,
É na cidade que mora.

Como todos, Dona Alice
Espera, em calma, a velhice.

E usa o cabelo em bando
Como convém a uma vó.

Vai Matias de sacola,
Todos os dias pra escola.

E para que a nossa história
Não ficasse relambória,

A Rosinha, envergonhada
De sua vida passada,

Estuda como uma traça
E sem mais sofrer vexames

Passa sempre nos exames
Como a luz pela vidraça.


(“Pé de Pilão” – Editora L&PM Editores, Porto Alegre, 1981)

- XXVIII -


O Milagre

Dias maravilhosos em que os jornais vêm cheios de poesia... e do lábio do amigo brotam palavras de eterno encanto... Dias mágicos... em que os burgueses espiam, através das vidraças dos escritórios, a graça gratuita das nuvens...


Epígrafe

As únicas coisas eternas são as nuvens...


Puríssima

As admiráveis instalações sanitárias que há na lua! Tudo branco, tudo polido, tudo limpinho. Jorros dágua. Frescor. Alívio. Os anjos que o digam! Pois só aos anjos é permitido servirem-se do nosso higiênico satélite para as suas ablusões e necessidades...



Objetos Perdidos
Os guarda-chuvas perdidos... aonde vão parar os guarda-chuvas perdidos? E os botões que se desprenderam? E as pastas de papéis, os estojos de pince-nez, as maletas esquecidas nas gares, as dentaduras postiças, os pacotes de compras, os lenços com pequenas economias, aonde vão parar todos esses objetos heteróclitos e tristes? Não sabes? Vão parar nos anéis de Saturno. São eles que formam, eternamente girando, os estranhos anéis desse planeta misterioso e amigo.


Triste Época

Em nossa triste época de igualitarismo e vulgaridade, as únicas criaturas que mereceriam entrar numa história de fadas são os mestre-cucas, com os seus invejáveis gorros brancos, e os porteiros dos grandes hotéis, com os seus alamares, os seus ademanes, a sua indiscutida majestade.


Paisagem de Após-Chuva

A relva, os cavalos, as reses, as folhas, tudo envernizadinho como no dia inolvidável da inauguração do Paraíso...

Sinais dos Tempos
Esses que, pelas estradas claras dos primeiros séculos, mendigavam e faziam pueris e deliciosos milagres, viraram agora transformistas de palco. Santos que perderam a fé, socorrem-se habilmente dos recursos inesgotáveis que a técnica hoje em dia nos proporciona, quando seria muito mais fácil um milagre... A divina simplicidade de um milagre.


(“Sapato Florido” – “Poesias”, Editora Globo, 1975)

- XXVII -


Canção da Primavera

Para Erico Verissimo

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!


Canção de Barco e de Olvido

Para Augusto Meyer

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.

Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins-de-linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?

Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando meus quintanares...

No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.


Canção Ballet
Para Edy Dutra da Costa
Ele sozinho passeia
Em seu palácio invisível.
Linda moça risca um riso
Por trás do muro de vidro.

Risca e foge, num adejo.
Ele pára, de alma tonta.
Um beijo brota na ponta
Do galho do seu desejo.

E pouco a pouco se achegam.
Põem a palma contra a palma.
Mas o frio, o frio do vidro,
Lhe penetra a própria alma!

“Ai do meu Reino Encantado,
Se tudo aqui é impossível...
Pra que palácio invisível
Se o mundo está do outro lado?”

E inda busca, de alma louca,
Aquele lábio vermelho.
Ai, o frio da própria boca!
O amor é um beijo no espelho...

Beija e cai, como um engonço,
Todo desarticulado...
Linda moça, como um sonho,
Se dissipa do outro lado...



(“Canções” – “Poesias”, Editora Globo, 1975)

- XXVI -

Mário Quintana - Foto da revista "Manchete" - 1973
___
Velha história
Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequeninho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o home ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas escadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no “17”! – o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando o peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial!

Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:

“Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!...”

Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho nágua. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando... até que o peixinho morreu afogado...

Da paginação
Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos – gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas – que passarão também a fazer parte dos poemas...

Do inédito
E quando, morto de mesmice, te vier a nostalgia de climas e costumes exóticos, de jornais impressos em misteriosos caracteres, de curiosas beberagens, de roupas de estranho corte e colorido, lembra-te que para alguém nós somos os antípodas: um remoto, inacreditável povo do outro lado do mundo, quase do outro lado da vida – uma gente de se ficar olhando, olhando, pasmado... Nós, os antípodas, somos assim.


Inferno

Em suave andadura de sonho, sob uma infinita série de arco-íris celestiais, anjos me conduziam num palanquim dourado, entre um curioso povo de profetas e virgens, que formavam alas para me ver passar. Mas eu me debruçava inquieto a uma e outra janela: faltava-me alguma coisa. Faltava... Faltavam os meus desafetos. Eu só queria ver a cara deles, ver a cara que eles fariam quando me vissem passar, tirado por anjos, num palanquim de ouro!



(De “Sapato Florido” – “Prosa & Verso”, Ed. Globo, 1978)

- XXV -

Do amigo

Olha! É como um vaso
De porcelana rara o teu amigo.
Nunca te sirvas dele... Que perigo!
Quebrar-se-ia, acaso...
Das utopias
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!

Do mau estilo
Todo o bem, todo o mal que eles te dizem, nada
Seria, se soubessem expressá-lo...
O ataque de uma borboleta agrada
Mais que todos os beijos de cavalo.


Da infiel companheira

Como um cego, grita a gente:
“Felicidade, onde estás?”
Ou vai-nos andando à frente...
Ou ficou lá para trás...


Da análise

Eis um problema! E cada sábio nele aplica
As suas lentes abismais.
Mas quem com isso ganha é o problema, que fica
Sempre com um x a mais...

Da eterna procura
Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.


Da sabedoria dos livros

Não penses compreender a vida nos autores.
Nenhum disto é capaz.
Mas, à medida que vivendo fores,
Melhor os compreenderás.

Do exercício da Filosofia
Como o burrico mourejando à nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dito um sábio grego outrora...



(De “Espelho Mágico” – “Prosa & Verso”, Editora Globo, 1978)

21 janeiro 2008

- XXIV -


O Vento

Havia uma escada que parava de repente no ar
Havia uma porta que dava para não se sabia o quê
Havia um relógio onde a morte tricotava o tempo

Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos dos pés
E pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo

E o vento!

O vento que vinha desde o princípio do mundo
Estava brincando com os teus cabelos...


Presença

Para Lara de Lemos

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...

É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...

Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu te sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida...

Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!


Dogma e ritual

Os dogmas assustam como trovões
e que medo de errar a seqüência dos ritos!
Em compensação,
Deus é mais simples do que as religiões.


Sempre

Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.
Só o que está perdido é nosso para sempre.
Nós só amamos os amigos mortos
e só as amadas mortas amam eternamente...


(“Apontamentos de História Sobrenatural” – Editora Globo, 1977)

- XXIII -


Oito e meio

I

Sei de pessoas que julgaram artificial o “8 ½”, de Fellini, essa obra-prima do barroquismo. Elas é que devem ser artificiais, porque nossa alma é assim como ali está, com suas idades sucessivas convivendo, o acontecido e o imaginado tendo ambos o mesmo poder traumático e o mesmo pé de realidade. Parece-te que estou falando de poesia?

II

Todas as artes são manifestações diversas da poesia – inclusive, às vezes, a própria poesia.

III

Repara: todo esse atafulhamento das nossas igrejas barrocas apenas poderá significar as complicações ingênuas da fé popular... Fiquem os racionalistas com as paredes nuas e as colunas hirtas. O classicismo pode ser muito lógico, mas é antinatural.

IV

E depois, por que motivo há de a arte clássica significar perfeição? Essa Perfeição, com P maiúsculo, não seria apenas um nome que os bárbaros davam, supersticiosamente, aos padrões de beleza dos civilizados?

V

Em Picasso, em certos Picassos, a boca, a face, o perfil, as orelhas reajuntam-se, não arbitrariamente e sim para formar uma harmonia nova, de maneira que o seu arreglo final não nos amedronta como um monstro, mas tranqüiliza-nos como uma obra clássica. Na poesia há muito já acontecia assim, como na montagem de imagens aparentemente heteróclitas e anacrônicas da “Salomé” de Apollinaire e que, no entanto, serviam para formar a atmosfera dançante, luxuosa, versátil e aérea daquele poema. E foi preciso quase cem anos para que o cinema, como no “8 ½” de Fellini, se integrasse também na poesia. Em resumo: não o desprezo da lógica, mas a aceitação da lógica imagista – o que, como todo verdadeiro modernismo, é tão velho como o mundo, porque usa apenas a velha linguagem dos sonhos e das histórias de fadas.


Dos antigos

“Ah, os egípcios! Ah, os etruscos! Ah, os gregos!” Mas essa nossa atitude ante os que nos precederam de milênios é, no fundo, um tanto protetora, não acham? É como se disséssemos: “Meu Deus, como eles eram precoces!”


Shakespeare

Os que se empenham em provar que as obras de Shakespeare só podem ter sido escritas por outro, estes, por sua vez, só podem ser uns invejosos póstumos. O caso desses críticos não é um caso apenas divertido, como se vê. É grave, e triste, e patológico... São os parentes ambiciosos desses que vivem catando “influências” na obra de seus contemporâneos.

(“Caderno H” – Editora Globo, 1977)

- XXII -


- O ADOLESCENTE -

A vida é tão bela que chega a dar medo.

Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas
esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.

Medo que ofusca: luz!

Cumplicemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:

Adolescente, olha! A vida é nova...
A vida é nova e anda nua
- vestida apenas com o teu desejo!

- O CIRCO, O MENINO, A VIDA -

A moça do arame
equilibrando a sombrinha
era de uma beleza instantânea e fulgurante!
A moça do arame ia deslizando e despindo-se.
Lentamente.
Só para judiar.
E eu com os olhos cada vez mais arregalados
até parecerem dois pires:
Meu tio dizia:
“Bobo!
Não sabes
que elas sempre trazem uma roupa de malha por baixo?”
(Naqueles voluptuosos tempos não havia maiôs nem biquínis...)
Sim! Mas toda a deliciante angústia dos meus olhos virgens
segredava-me
sempre:
“Quem sabe?...”

Eu já tinha oito anos e sabia esperar.

Agora não sei esperar mais nada
Desta nem da outra vida.
No entanto
o menino
(que não sei como insiste em não morrer em mim)
ainda e sempre
apesar de tudo
apesar de todas as desesperanças,
o menino
às vezes
segreda-me baixinho:
“Titio, quem sabe?...”

Ah, meu Deus, essas crianças!

(“Nariz de Vidro” – Editora Moderna, 1984)

- XXI -

Cujas Canções

É costume cada um colocar sua profissão ou títulos nos cartões de visita.

Ora, quem escreve estas linhas já recebeu alguns títulos da generosidade de seus conterrâneos; escolher um só seria indelicadeza com os outros proponentes.

Quanto a mim, sempre fui de opinião que bastava o nome da pessoa, sem a vaidade de títulos secundários. Mas eis que a minha camareira fez-me cair em tentação: dá-se o caso que saiu a edição de meu livro Canções, ilustrado por Noêmia e que, ao ser noticiado por Nilo Tapecoara no “Bric-à-brac da Vida”, este o publicou com o meu retrato em duas colunas, e, abaixo do mesmo, uma notícia que assim principiava, com a primeira linha impressa em letras maiúsculas:

MÁRIO QUINTANA, CUJAS CANÇÕES etc. etc...

Ora, na manhã daquele dia, ao servir-me o café na cama, sia Balbina não podia ocultar o orgulho que lhe causava o seu hóspede e repetia:

“Cujas canções, hein, cujas canções!”

O seu maior respeito era devido, sem dúvida, à misteriosa palavra “cujas”...

E não sei se resistirei à idéia que me inspirou sia Balbina: imprimir meu cartão de visitas assim:

MÁRIO QUINTANA
Cujas Canções


A Vida Simples

Ora, Maria! O meu mundo é de temperaturas tenções fulgurações...
Eu nada tenho a ver com os sentimentos humanos!
Por que que tu não és uma vaca, Maria? Por quê
Ficaria tudo mais simples e verdadeiro...

(“Porta Giratória” – Editora Globo, 1988)

- XX -

Biografia

Era um grande nome – ora, que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou nome de rua... E continuaram a pisar em cima dele.


Conversa de cemitério

- Como vai você aí, vizinho?

- Oh! Em excelente estado de putrefação.


Esvaziamento

Cidade grande: dias sem pássaros, noites sem estrelas.


Trecho de carta

As palavras de gíria, isso não tem grande importância, meu caro professor: tão logo aparecem, desaparecem.

O pior são essas idéias de gíria...


A poesia é necessária

Título de uma antiga seção do velho Braga na Manchete. Pois eu vou mais longe ainda do que ele. Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus, não tem importância. É preferível, para a alma humana, fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício da arte poética representaria, no caso, como que um esforço de superação.

É fato consabido que esse refinamento do estilo acaba trazendo necessariamente o refinamento da alma.

Sim, todos devem fazer versos. Contanto que não venham mostrar-me.

Poeminho do contra


Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!


Da irresistível beleza

O leão é um animal tão belo que ser devorado por ele é melhor do que ser devorado por um crocodilo... Diante de sua arremetida, bem sei que se pode morrer de puro medo... porém nunca de horror.


Imagem

Haverá ainda, no mundo, coisas tão simples e tão puras como a água bebida na concha das mãos?


(“Na Volta da Esquina” – Editora Globo, Porto Alegre, 1979)

18 janeiro 2008

- XIX -


O Poeta

Venho do fundo das Eras,
Quando o mundo mal nascia,
Sou tão antigo e tão novo
Como a luz de cada dia.


Meu bonde passa pelo Mercado

O que há de bom mesmo não está à venda.
O que há de bom não custa nada.
Este momento é a flor da eternidade!
Minha alegria aguda até o grito...
Não essa alegria alvar das novelas baratas,
Pois minha alegria inclui também minha tristeza – a nossa
Tristeza...
Meu companheiro de viagem, sabes?
Todos os bondes vão para o Infinito!


O velho poeta

Velho? Mas como? Se ele nasceu na manhã de hoje...
Não sabe o que fazer do mundo,
Das suas mãos,
De si mesmo,
Do seu sempre primeiro e penúltimo amor...
E – quem diria? – o que ele mais teme na vida
é o seu próximo poema!
Porque está sempre perigando sair tão
comovedoramente ruinzinho
como os primeiros poemas que ele escreveu menino...


O último poema


Enquanto me davam a extrema-unção,
Eu estava distraído...
Ah, essa mania incorrigível de estar
pensando sempre noutra coisa!
Aliás, tudo é sempre outra coisa
- segredo da poesia –
E, enquanto a voz do padre zumbia como um besouro,
Eu pensava era nos meus primeiros sapatos
Que continuavam andando, que continuam andando,
Até hoje
Pelos caminhos deste mundo.



(“Preparativos de Viagem” – Editora Globo, 2ª Edição, 1989)

- XVIII -

O Baú

Como estranhas lembranças de outras vidas,
que outros viveram, num estranho mundo,
quantas coisas perdidas e esquecidas
no teu baú de espantos... Bem no fundo,

uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino

te traz de súbito uma idéia louca!
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.

E em vão tentas lembrar o nome dela...
e em vão ela te fita... e a sua boca
tenta sorrir-te mas está quebrada!


Que bom ficar assim

Que bom ficar assim, horas inteiras,
Fumando... e olhando as lentas espirais...
Enquanto, fora, cantam os beirais
A baladilha ingênua das goteiras.

E vai a Névoa, a bruxa silenciosa,
Transformando a Cidade, mais e mais,
Nessa Londres longínqua, misteriosa
Das poéticas novelas policiais...

Que bom, depois, sair por essas ruas,
Onde os lampiões, com sua luz febrenta,
São sóis enfermos a fingir de luas...

Sair assim (tudo esquecer talvez!)
E ir andando, pela névoa lenta,
Com a displicência de um fantasma inglês...


O Dia seguinte ao do amor

Quando a luz estender a roupa nos telhados
E for todo o horizonte um frêmito de palmas
E junto ao leito fundo nossas duas almas
Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,

Seremos, na manhã, duas máscaras calmas
E felizes, de grandes olhos claros e rasgados...
Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,
Encheremos o céu de vôos encantados!...

E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,
Serão todos felizes, sem saber por quê...
Até os cegos, os entrevadinhos... E

Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,
Nós improvisaremos danças espantosas
Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cata-ventos!



(“Nariz de Vidro” – Editora Moderna, 1984)

- XVII -


Batuque

Dentro da noite sinto-me às vezes pula-pulando ao som do batuque
Como se não tivesse nunca quebrado a minha perna esquerda...
E tudo vai fantasticamente como nesses desenhos animados
- salvo quando me sinto bobamente flutuando no espaço...
Ah! mas não há nada mais fantástico
Do que esta simples mesinha de pinho
Onde sempre me confesso com divertida emoção!


Inquietude

Esse olhar inquisitivo que me dirige às vezes nosso próprio cão...
Que quer ele saber que eu não sei responder?
Sou desse jeito... Vivo cercado de interrogações.
Dinheiro que eu tenha, como vou gastá-lo?
E como fazer para que não me esqueças?
(ou eu não te esqueça...)
Sinto-me assim, sem motivo algum,
Como alguém que estivesse comendo uma empada de camarão sem camarões
Num velório sem defunto...

Achados e perdidos

Eu conduzo minha poesia como um burro-sem-rabo
Nesta minha Porto Alegre de incríveis subidas e descidas.
Suo como o Diabo.
E desconfio
Que os meus melhores poemas terão caído pelo caminho...
Mas como saber quais são?!
Alguém por acaso os pegará do chão
E vai ficar pensando que o espantoso achado
Pertence a ele... unicamente a ele!

Orquestra

A coisa mais solitária do mundo é um solo de flauta.
Em compensação a tua cabeça está cheia de borboletas estridulas
Mas eu deixo tombar das minhas mãos o pandeiro de guizos
E, na verdade, o que eu tenho é uma alma de violoncelo
- grave, profunda, triste...


(“Velório sem defunto” – Ed. Mercado Aberto, 1990)
Foto: Desenho de Ubirajara Garcia Pinto - contracapa do livro

- XVI -


Incorrigível

O fantasma é um exibicionista póstumo.

Coisas do tempo

Com o tempo, não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros.

Simplifiquemos

Sempre me pareceu que as antigas gramáticas complicavam muito as coisas. Lá diziam elas, por exemplo: “Coloca-se o pronome oblíquo depois do verbo”. Muito bem! O diabo é que se seguia uma lista de 15 ou 16 exceções. Ora, ficaria muito mais fácil se dissessem: “O pronome oblíquo é colocado antes do verbo, exceto quando este inicia uma frase”. E olhe lá!

A grande catástrofe

No princípio era o Verbo. O verbo Ser. Conjugava-se apenas no infinito. Ser, e nada mais. Intransitivo absoluto.

Isto foi no princípio. Depois transigiu, e muito. Em vários modos, tempos e pessoas. Ah, nem queiras saber o que são as pessoas: eu, tu, ele, nós, vós, eles... Principalmente eles!

E, ante essa dispersão lamentável, essa verdadeira explosão do SER em seres, até hoje os anjos ingenuamente se interrogam por que motivo as referidas pessoas chamam a isso de CRIAÇÃO...

Leituras

Não, não te recomendo a leitura de Joaquim Manuel de Macedo ou de José de Alencar. Que idéia foi essa do teu professor?

Para que havias tu de os ler, se a tua avozinha já os leu? E todas as lágrimas que ela chorou, quando era moça como tu, pelos amores de Ceci e da Moreninha, ficaram fazendo parte do teu ser, para sempre.

Como vês, minha filha, a hereditariedade nos poupa muito trabalho.

Destino atroz

Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.

A geração fatal

Chocante, o caso da minha geração: é, em geral, a história de um menino que nasceu e foi criado numa casa de intolerância.

(“Caderno H” – Editora Globo, 1977)

17 janeiro 2008

- XV -


É mesma ruazinha sossegada

Para Emílio Kemp

É a mesma ruazinha sossegada
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: - alegria – risos
Depois do Circo já ter ido embora!...



O dia abriu seu pára-sol bordado

Para Erico Veríssimo

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua – a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...

(“A Rua dos Cataventos” – U.F.R.G.S. – Edição Comemorativa, 1992)


- XIV -


Os Arroios

Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas dágua no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos, às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...

Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.

Que pena me dão os arroios,
Os inocentes arroios!...



A Nossa Canção de Roda


A nossa canção de roda
tinha nada e tinha tudo
como a voz dos passarinhos
- mas que será que dizia?

A nossa canção de roda
Era boba como a lua.
Mas a roda dispersou-se,
cada qual perdeu seu par...
Agora,
nossos fantasmas meninos
talvez a cantem na lua...
talvez que junto a algum leito
a morte esteja a cantar
como quem nana um filhinho...

A nossa canção de roda
tinha nada e tinha tudo:
era
uma girândola de vozes
chispando
mais lindas do que as estrelas.
Era uma fogueira acesa
para enganar o medo, o grande medo
que a Noite sentia
da sua própria escuridão.

(“Baú de Espantos” – Ed. Globo, 1988)

- XIII -


A Poesia

Encomendaram-me os editores uma “suma” de minha poesia, o que me enche de perplexidade. Pois não foi aereamente e sim muito de propósito que dei a um dos meus livros (que por sinal é o predileto de Manuel Bandeira, Augusto Meyer e Carlos Drummond) o título de O Aprendiz de Feiticeiro, tirado de uma lenda alemã. Esse incauto aprendiz, na ausência de seu Mestre, pôs-se a lidar com forças desconhecidas, e o que aconteceu foi uma incontrolável multiplicação de vassouras, no meu caso uma multiplicação de poemas.

Saberá mesmo um poeta em que consiste essa espécie de força oculta que o faz poetar? Ele não tem culpa de ser poeta; portanto, não tem do que se desculpar ou explicar.

Se eu conheço algum segredo é o da sinceridade. Não escrevo uma vírgula que não seja confessional. Esse desejo insopitável de expressar o que tem dentro de si é o mesmo que leva o crente ao confessionário e o incréu ao divã do analista. O poeta prescinde de ambas as coisas, e os que não são poetas, mas gostam de poesia, desafogam a si mesmos através dos poemas que lêem: porque na verdade vos digo que não é o leitor que descobre o seu poeta, mas o poeta que descobre o seu leitor.

Sentimentalismos

Quando uma dessas vovozinhas me exibe umas fotografias coloridas e ainda por cima vai apontando e explicando: - Este aqui é o meu último netinho, o outro é o mais velhinho, a do meio, seu Mário, é a que está sentada na areia... – ah!, vocês nem acreditariam, mas essa é a única chateação que eu suporto com gosto.

(“Porta Giratória” – Ed. Globo, 1988)

- XII -


Noturno

Apenas, aqui e ali, uma janelinha de arranha-céu... Perdida... Enquanto, do fundo do único terreno baldio, um grilo insiste em transmitir, na sua frágil Morse de vidro, não se sabe que misteriosa mensagem às estrelas ausentes.

Preciosismo?

Eles erram sempre de maneira tão complicada que eu não atino como ainda não descobriram que seria muito mais fácil escreverem certo.

Frustração

Outono: essas folhas que tombam na água parada dos tanques e não podem sair viajando pelas correntezas do mundo...

Diálogo de bar

- Mas há as compreensivas...

- Ah! Essas são muito piores!

O Chalé da Praça Quinze

O Chalé fazia parte da gente. Me lembro do Bilu, com o seu perfil perpendicular de cegonho sábio, o longo bico mergulhado – não no gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de chope, que era de fato o que estava acontecendo – mas no poço artesiano de si mesmo.

Me lembro do Reynaldo, redondo, pacato, amável, tão amável, pacato e redondo que parecia um desses personagens de romance policial que ninguém desconfia que seja o autor do último crime da mala.

Me lembro do Cavalcanti, com a sua cara silenciosa e receptiva de mata-borrão.

Me lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos silenciosos... essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo o verso inesquecível de Valéry: “Oh mon bon compagnon de silence!”

Este silêncio era apenas quebrado quando chegava o Athos, o Athos centrífugo e pirotécnico. Mas isto não perturbava o nosso silêncio, nem o próprio silêncio do Athos... Pois havia um profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente a todas as nossas palavras.

Era o rio da poesia?

O rio da harmoniosa confusão das almas?

Agora é apenas o rio do tempo que passou.

(“Caderno H” – Ed. Globo, 1977)

- XI -


Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso nem porto.
Alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


Eu fiz um poema

Eu fiz um poema belo e alto
como um girassol de Van Gogh,
como um copo de chope sobre o mármore de um bar,
que um raio de sol atravessa.
Eu fiz um poema belo como um vitral, claro como um adro...
Agora não sei que chuva o escorreu.
Suas palavras estão apagadas,
alheias uma à outra como as palavras de um dicionário.
Eu sou como um arqueólogo decifrando as cinzas de uma cidade morta.
O vulto de um velho arqueólogo curvado sobre a terra...
Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?


A Oferenda

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
que vão tomando a forma do teu seio.


(“Esconderijos do Tempo”, Ed. LP&M, 1981)

16 janeiro 2008

- X -



O homem que não suportava cerimônias

- De repente, ele não pôde mais e rebentou de riso em plena missa de corpo presente.

- Ele quem?

- Ora, o defunto...

A dúvida e a certeza

São Tomé – que como todo o mundo sabe, foi o precursor da dúvida cartesiana – jamais perdeu a obsessão das verdades palpáveis e por isso foi parar no Inferno. Ora, os mais infelizes dentre os infernados são os arrependidos e um destes censurou tristemente a Tomé:

- Viste? Só de teimoso tu perdeste o Céu...

E Tomé:

- O Céu? Não sejas doido... Só existe o Inferno!

O dragão

Na volta da esquina encontrei um dragão.

- Que belas escamas, senhor dragão! Que luminoso laquê! E as chamas que deitais por vossa goela têm o colorido e o movimento de um balê! E que padrão heráldico, Excelência, que...

O dragão saiu se reboleando.

Apenas...

Aula inaugural de uma pequena escola do interior. Os alunos, endomingados como requeria a ocasião. O professor, grave, de preto, voz cava. Pelo que bem se vê que a aula era de Português. E eis que no final, tão ansiado pela gente miúda como pela gente grande, ele tossiu, mudou de tom e disse:

- Atenção, meninos! Para gravarem melhor a matéria exposta, copiem o esquema que vou traçar no quadro-negro.

Perpassa pela classe um frio de pânico. Esquema? Meu Deus, que diabo disto seria aquilo?

Mas o professor, que, além de autodidata, era também humano, farejou a angústia daquelas alminhas e esclareceu então, com um esgar bondoso:

- É uma sinopse, meus filhos, apenas uma sinopse...

Contradições?

... mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira.

E por isso é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, com toda a sinceridade, as coisas mais opostas.

Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.

(“Na Volta da Esquina” – Ed. Globo, 1979)

15 janeiro 2008

- IX -

Ah! Essas Precauções...

Para desespero de seus parentes, o velho rei Mitridates, como todo mundo sabe, conseguiu tornar-se imune a todos os venenos... até que um bom tijolaço na cabeça liquidou o assunto.

Evolução

Antes, quase todo o mundo passava a vida em salas de espera. Mas, agora, em vez daquele abafamento, é nestas longas filas de espera, ao ar livre, em plena rua.

Urbanística

Essas vilas de arrabalde com os seus jardins bem arrumados, bonitinhos, comportadinhos... Mas por que não a liberdade de um matagal selvagem? Por que não deixam ao menos a natureza ser natural?

Suspense


Depois que o orador oficial deu conta do seu discurso, há um momento de atroz suspense. É quando o presidente da mesa, como quem não quer nada, ergue-se e diz, sadicamente: - Se alguém mais quiser fazer uso da palavra...

Nostalgia

Esnobe? Nem por isso... Mas eu gosto é de filmes com cristais e duquesas. E com grandes lustres devoradores de reflexos. Ali onde a alegria cabe apenas num sorriso. E onde a tristeza é apenas uma valsa lenta.

Simultaneidade

- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!

- Você é louco?

- Não, sou poeta.

Uma simples elegia

Caminhozinho por onde eu ia andando
e de repente te sumiste,
- o que seria que te aconteceu?
Eu sei... o tempo... as ervas más... a vida...
Não, não foi a morte que acabou contigo:
Foi a vida.
Ah, nunca a vida fez uma história mais triste
que a de um caminho que se perdeu...

(“A Vaca e o Hipogrifo” – Ed. Garatuja, 1979)

- VIII -


Recordo ainda...
Para Dyonelio Machado

Recordo ainda... E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada afora após segui... Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai...
Que envelheceu um dia, de repente!...

(“A Rua dos Cataventos” – U.F.R.G.S. – Edição Comemorativa, 1992)

- VII -

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são,
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...

(“A Rua dos Cataventos” – U.F.R.G.S. – Edição Comemorativa, 1992)

- VI -

Hoje é Outro Dia

Quando abro cada manhã a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova...

Primavera

As águas riem como raparigas
À sombra verde-azul das samambaias!

Lembras-te?

Minha lanterna andante, meu cachorrinho de cego...
Perdidos naquela Babilônia, nem sei bem se eras o caminho...
Se, acaso, eras a verdade...
Eu sei apenas que Tu és a Vida!

Jardim Interior

Todos os jardins deviam ser fechados,
Com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de que por eles passa indiferente.

À Maneira de Jacques Prévert

Um homem de visão com uma mulher de vison
Um homem público e uma mulher pública
A poluição diurna e as poluções noturnas
O rabo do olho num rabo de saia
Um gato escaldado e um cachorro quente
Um tigre de Bengala e um gato de guarda-chuva.

Magias

Os antigos retratos de parede
Não conseguem ficar por longo tempo abstratos.

Às vezes os seus olhos te fitam, obstinados,
Porque eles nunca se desumanizam de todo.

Jamais te voltes para trás de repente:
Poderias pegá-los em flagrante.

Não, não olhes nunca!
O melhor é cantares cantigas loucas e sem fim...
Sem fim e sem sentido...
Dessas que a gente inventava para enganar a solidão dos caminhos sem lua.

(“A Cor do Invisível” – Ed. Globo, 1994)

- V -

Extra-Terrena

Para Cecília Meireles


Nós colhíamos flores de hastes muito longas
E cujos nomes nem ao menos conhecíamos...
E nem sequer, também, sabíamos os nossos nomes...
E para quê, se um para o outro éramos Tu, apenas...
Ou quem sabe se a Morte nos houvera bordado numa tapeçaria
A que o vento emprestasse a vida por um momento?
E por isso os nossos gestos eram ondulantes como as plantas marinhas
E as nossas palavras como asas suspensas no vento...

(“Preparativos de Viagem” – Ed. Globo, 1989)

- IV -

Indivisíveis

O meu primeiro amor sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.

Falávamos de coisas bobas.
Isto é, que a gente grande achava bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos.

Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que apenas tinham a mesma fidelidade sem compromisso
E a mesma animal – ou celestial – inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que disséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se, não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida...

(“Nariz de Vidro” – Ed. Moderna, 1984)

- III -

O Espelho

E como eu passasse por diante do espelho
não vi meu quarto com as suas estantes
nem este meu rosto
onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:
janelas onde olham avós hirsutos
e as vovozinhas de saia-balão
como pára-quedistas às avessas que subissem do fundo do tempo.

O relógio marcava a hora
mas não dizia o dia. O Tempo
desconcertado,
estava parado.

Sim, estava parado
em cima do telhado...
como um catavento que perdeu as asas!

(“Apontamentos de História Sobrenatural” – Ed. Globo, 1977)

- II -

Escrevo diante da janela aberta

Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na pagina deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!

(“A Rua dos Cataventos” – U.F.R.G.S. – Edição Comemorativa, 1992)

- I -

A amiga

Ele chegou ao bar, pálido e trêmulo. Sentou-se.

- Por enquanto, nada – desculpou-se ao garçom. – Estou esperando uma amiga.

Dali a minutos, estava morto.

Quanto ao garçom que o atendeu, esse adorava repetir a história, mas sempre acrescentava ingenuamente:

- E, até hoje, a “grande amiga” não chegou!

A Esfinge

Na volta da esquina encontrei a Esfinge. Petrifiquei-me. Ela me disse, então, olhando-me nos olhos:

- Devora-me ou decifro-te!

O velho e o acaso

O velho mendigo que neste momento acaba de encontrar num monte de sucata a lâmpada de Aladino – tão amassada, tão enferrujada e de feitio tão esquisito – eis que ele a abandona e leva em vez dela uma útil chaleira. Uma chaleira sem tampa, digo eu, para os que gostam de pormenores. E não é esta a primeira vez que o acaso, inocentemente, assim estraga uma bela história.

Cântico dos cânticos

Vamos compor, amada, um Cântico dos Cânticos: o verdadeiro Cântico dos Cânticos: - tu Te louvarás unicamente a Ti e eu Me louvarei unicamente a Mim.

* * *

(“Na Volta da Esquina” – Ed. Globo, 1979)