I
Sei de pessoas que julgaram artificial o “8 ½”, de Fellini, essa obra-prima do barroquismo. Elas é que devem ser artificiais, porque nossa alma é assim como ali está, com suas idades sucessivas convivendo, o acontecido e o imaginado tendo ambos o mesmo poder traumático e o mesmo pé de realidade. Parece-te que estou falando de poesia?
II
Todas as artes são manifestações diversas da poesia – inclusive, às vezes, a própria poesia.
III
Repara: todo esse atafulhamento das nossas igrejas barrocas apenas poderá significar as complicações ingênuas da fé popular... Fiquem os racionalistas com as paredes nuas e as colunas hirtas. O classicismo pode ser muito lógico, mas é antinatural.
IV
E depois, por que motivo há de a arte clássica significar perfeição? Essa Perfeição, com P maiúsculo, não seria apenas um nome que os bárbaros davam, supersticiosamente, aos padrões de beleza dos civilizados?
V
Em Picasso, em certos Picassos, a boca, a face, o perfil, as orelhas reajuntam-se, não arbitrariamente e sim para formar uma harmonia nova, de maneira que o seu arreglo final não nos amedronta como um monstro, mas tranqüiliza-nos como uma obra clássica. Na poesia há muito já acontecia assim, como na montagem de imagens aparentemente heteróclitas e anacrônicas da “Salomé” de Apollinaire e que, no entanto, serviam para formar a atmosfera dançante, luxuosa, versátil e aérea daquele poema. E foi preciso quase cem anos para que o cinema, como no “8 ½” de Fellini, se integrasse também na poesia. Em resumo: não o desprezo da lógica, mas a aceitação da lógica imagista – o que, como todo verdadeiro modernismo, é tão velho como o mundo, porque usa apenas a velha linguagem dos sonhos e das histórias de fadas.
Dos antigos
“Ah, os egípcios! Ah, os etruscos! Ah, os gregos!” Mas essa nossa atitude ante os que nos precederam de milênios é, no fundo, um tanto protetora, não acham? É como se disséssemos: “Meu Deus, como eles eram precoces!”
Shakespeare
Os que se empenham em provar que as obras de Shakespeare só podem ter sido escritas por outro, estes, por sua vez, só podem ser uns invejosos póstumos. O caso desses críticos não é um caso apenas divertido, como se vê. É grave, e triste, e patológico... São os parentes ambiciosos desses que vivem catando “influências” na obra de seus contemporâneos.
(“Caderno H” – Editora Globo, 1977)
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