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Não existe no mundo tanta gente como o número de ordem que me deram no cartão de identidade, que não vou te mostrar porque não poderias lê-lo antes de o ter dividido da direita para a esquerda em grupos de três, para depois o pronunciares cuidadosamente da esquerda para a direita. Sei que o mesmo acontece contigo, mas que te importa, que nos importa isso – antes que um dia nos identifiquem a ferro em brasa, como fazem os estancieiros com o seu gado amado?
Esse número, de quintilhões ou quatrilhões, não me lembro mais, me faz recordar que venho desde o princípio do mundo, lá do fundo das cavernas, depois de pintar nas suas paredes, com uma habilidade hoje perdida, aqueles animais que vejo nos álbuns, milagre de movimento e síntese. Agora sou analítico, expresso-me em símbolos abstratos e preciso da colaboração do leitor para que ele “veja” as minhas imagens escritas.
Olho ao redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando os problemas dele, João Silva.
...Ele está bebendo a milenar inquietação do mundo!
RESTAURANTE
I
A lagosta tem a cor, o frescor, o sabor das antigas moringas de barro.
II
... e essa tentação de roçar na face a pele perfumada do pêssego, como se ele fosse uma pêssega...
III
O café é tão grave, tão exclusivista, tão definitivo que não admite acompanhamento sólido. Mas eu o driblo, saboreando, junto com ele, o cheiro das torradas-na-manteiga que alguém pediu na mesa próxima.
IV
(As precedentes notas de sinestesia são do tempo em que havia restaurantes – onde havia lagostas – e não esses balcões de hoje em que o freguês massificado e apressado, ao servir-se de um frango, parece que o está devorando no próprio poleiro.)
CONTO FAMILIAR
Era um velho que estava na família há noventa e nove anos, há mais tempo que os velhos móveis, há mais tempo até que o velho relógio de pêndulo. Por isso estava ele farto dela, e não o contrário, como poderiam supor. A família o apresentava aos forasteiros, com insopitado orgulho: “Olhem! Vocês estão vendo como “nós” duramos?!”
Caduco? Qual nada! Tinha lá as suas idéias. Tanto que, numa dessas grandes comemorações domésticas, o pobre velho envenenou o barril de chope.
No entanto, como era obviamente impraticável – a não ser em novelas policiais – deitar veneno nas bebidas engarrafadas, apenas sobreviveram os inveterados bebedores de coca-cola.
- Mas como é possível – lamentava-se agora tardiamente o pobre velho – como é possível passar o resto da vida com esses? Com gente assim? Porque a coca-cola não é verdadeiramente uma bebida – concluiu ele, - a coca-cola é um estado de espírito...
E, assim pensando, o sábio ancião se envenenou também.
OS HÓSPEDES
Um velho casarão bem-assombrado
aquele que habitei ultimamente.
Não,
não tinha disso de arrastar correntes
ou espelhos de súbito partidos.
Mas a linda visão evanescente
dessas moças do século passado
as escadas descendo lentamente...
ou, às vezes, nos cantos mais escuros,
velhinhas procurando os seus guardados
no fundo de uns baús inexistentes...
E eu, fingindo que não via nada.
Mas para quê, amigos, tais cuidados?
Agora
foi demolida a nossa velha casa!
(Em que mundo marcaremos novo encontro?)
* * *
(“A Vaca e o Hipogrifo” – L&PM Editora, 3ª Edição, 1979)
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