Quem desça a Rua da Praia na Praça da Alfândega e olhe para o alto, à esquerda, será, apesar desse descuido, recompensado com uma surpresa – uma surpresa que depois eu conto.
Vivemos numa paisagem, ou antes, num cenário de demolições – o que faria da atual Porto Alegre uma ótima tomada para os filmes que se passassem em Londres ou Berlim depois de bombardeadas. Isto – quem é que não sabe? – é o Progresso. Mas que desolação, que confusão! Quando é que viveremos numa cidade pronta? Não estou mandando contra Porto Alegre. Quando estive, há pouco, em São Paulo, era a mesma coisa e, na rua, aquela agitação de formigueiro às tontas, como se alguém lhe houvesse pisado em cima.
Uma cidade pronta, disse eu? Mas não, não me falem em Brasília. Essa é pronta demais. Tão pronta, tão limpa, tão exata que parece uma maquete em tamanho natural. Falta-lhe a pátina do tempo, isto que alguns chamam de historicidade e que eu chamaria simplesmente de tradição – que é coisa que não se inventa, como andaram querendo inventar o Vovô Índio para substituir o Papai Noel que nossos avós europeus importaram consigo, não de contrabando, mas dentro de seus corações, única bagagem indevassável aos fiscais da Alfândega.
Pois bem, dentro do programa de demolição e construção em que estava incluído muito velho pardieiro a pedir caridosa eutanásia, mas onde se cometeu também muito crime como o assassinato do velho templo barroco da Igreja do Rosário – acontece que, ao fundo daquele bloco de velhas casas que foram demolidas na Praça da Alfândega – que é que se vê, ao olhar à esquerda por cima do tapume? Uma palmeira! Lá, bem no fundo, enfim liberta dos paredões entre os quais estivera enterrada.
Que teria levado o empreiteiro de demolições a poupá-la? Porque era uma coisa viva, saída da natureza e não de mãos humanas? Bem sei que se têm destruído florestas, como na guerra se destroem exércitos, cidades. Tão fácil esta última façanha... basta apertar um botão. O difícil é fazer a coisa individualmente, com uma só criatura. Embora a guerra não seja considerada crime, pois é feita coletivamente. Esta a diferença entre nós e os totalitarismos. Porque estes desconhecem a unicidade do indivíduo humano. E, da mesma forma que executa friamente a destruição de florestas, o homem hesita em destruir uma árvore – tão sozinha como ele e com o mesmo direito de subsistir. Enfim, não sei se por esquecimento, ou por sentimento, é que foi poupada entre escombros, mas lá está ela sobre o tumulto da cidade – alta, viva, verde como uma esperança de melhores dias.
(“Na Volta da Esquina”, Editora Globo, Porto Alegre, 1979)
* * *
Foto: “A palmeira e o sol” - © Reynaldo Monteiro, 2006
Do site OLHARES.Com
Nenhum comentário:
Postar um comentário