- BAÚ DE ESPANTOS -
ANTI-CANÇÃO
NÚMERO UM
Passam
as belas na passarela:
é
tudo pura ventarolagem, vês?
Mas o
pensamento traça no ar
isentas
elaborações geométricas...
Poeta,
é preciso escolher
entre
o sopro e a construção.
E, no
espaço liberto – liberto do tempo –
assenta,
pedra a pedra, a tua pirâmide:
o
resto é canção... Canção é feita de vento.
Do
vento que faz o tempo, lento devorador de pirâmides...
Mas
só se pode construir cantando! E então?
Passam
as belas na passarela.
Cantam
as belas na passarela,
com seus vestidos da cor do tempo!
NOTURNO
DA VIAÇÃO FÉRREA
Ora,
os fantasmas são viajantes noturnos.
Se
aboletam nos carros vazios e ficam
(por
que será que os fantasmas não fumam?)
a
olhar o mundo que desliza...
Mas
sucede que as máquinas estavam manobrando apenas
E
depois veio a luz crescente, a luz cruel,
Situando
e ambientando as coisas.
E
quando surgem, cabalísticos, os primeiros letreiros:
Hotel
Savóia, Ao Pente de Ouro, Saúde da Mulher,
os
fantasmas, poídos de claridade,
soltam um suspiro e se desvanecem.
QUERIAS
QUE EU FALASSE DE “POESIA”
Querias
que eu falasse de “poesia” um pouco
mais...
e desprezasse o quotidiano atroz...
querias...
era ouvir o som da minha voz
e não um eco – apenas – deste mundo louco!
Mas
quê te dar, pobre criança, em troco
de
tudo que esperavas, ai de nós:
é que
eu sou oco... oco... oco...
como o Homem de Lata do “Mágico de Oz”!
Tu o
lembras, bem sei... ah! o seu horror
imenso
às lágrimas... Porque decerto se enferrujaria...
E tu... Como um lírio do pântano tu me
querias,
como
uma chuva de ouro a te cobrir devagarinho,
um
pássaro de luz... Mas haverá maior poesia
do que este meu desesperar-me eterno da
poesia?!
PARECE
UM SONHO
“Parece
um sonho que ela tenha morrido!”
diziam
todos... Sua viva imagem
tinha
carne!... E ouvia-se, na aragem,
passar o frêmito do seu vestido...
E era
como se ela houvesse partido
e
logo fosse regressar da viagem...
– até
que em nosso coração dorido
a Dor cravava o seu punhal selvagem!
Mas
tua imagem, nosso amor, é agora
menos
dos olhos, mais do coração.
Nossa saudade te sorri: não chora...
Mais
perto estás de Deus, como um anjo querido.
E ao
relembrar-te a gente diz, então:
“Parece um sonho que ela tenha vivido!”
1953
MANHÃ
Esta
noite eu sonhei que era Jackie Coogan.
Me
acordei
– Bom
dia, Senhor Sol, quanta luz! –
Todo iluminado
por dentro de alegria.
Na
janela,
A
fresca manhã sirria!
(Os coqueirais crespos cutucavam ela...)
(1926)
FAMÍLIA
DESENCONTRADA
Para Liana Pereira Milanez
O
Verão é um senhor gordo, sentado na varanda,
suando em bicas e reclamando cerveja.
O
Outono é um tio solteirão que mora lá em cima no
sótão e a toda hora protesta aos gritos:
“Que
barulho é esse na escada?!”
O
Inverno é o vovozinho trêmulo, com a boina enterrada
até os olhos, a manta enrolada nos queixos
e
sempre resmungando: “Eu não passo deste
agosto,
eu não passo deste agosto...”
A
Primavera, em contrapartida
– é ela quem salva a honra da família! –
é uma menininha pulando na corda cabelos
ao vento
pulando e cantando debaixo da chuva
curtindo o frescor da chuva que desce do
céu
o cheiro de terra que sobe do chão
o tapa do vento na cara molhada!
Oh! a
alegria do vento desgrenhando as árvores
revirando
os pobres guarda-chuvas
erguendo
saias!
A
alegria da chuva a cantar nas vidraças
sob as vaias do vento...
Enquanto
–
desafiando o vento, a chuva, desafiando tudo –
no meio da praça a menininha canta
a alegria da vida
a alegria da vida!
* * *
(“Baú de Espantos”, 4ª Edição, Editora
Globo, RJ,1988)
Nenhum comentário:
Postar um comentário