NOVA ANTOLOGIA POÉTICA
TUDO TÃO VAGO...
Nossa Senhora
Na beira do rio
Lavando os paninhos
Do bento filhinho
São João estendia
São José enxugava
E o menino chorava
Do frio que fazia
Dorme criança
Dorme meu amor
Que a faca que corta
Dá talho sem dor
(de uma cantiga de ninar)
Tudo tão vago... Sei que havia um rio...
Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...
O Menino dormira... Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...
E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...
Eras tu... que ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!...
SEGUNDA CANÇÃO DE MUITO LONGE
Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro...
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra coisa...
Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de
leões.
Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos reluzentes, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas...
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos...
As lindas e absurdas cantigas, tia Lula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras...
Onde andará agora o pince-nez da tia Lula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar a Toutinegre do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!...
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!
* * *
(*) “Toutinegre” - Nota minha: Grifei. Certamente houve falha na revisão antes da impressão do livro. Quintana
refere-se a “A TOUTINEGRA DO MOINHO”, de Emilio Richebourg. Entretanto, como me
propus a transcrever as obras de Quintana com a exata grafia com que foram
publicadas, mantenho no poema acima a palavra conforme foi impressa. Evandro.
DA VEZ PRIMEIRA EM QUE ME ASSASSINARAM
Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...
E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!
Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!
Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!
O DIA SEGUINTE AO DO AMOR
Quando a luz estender a roupa nos telhados
E for todo o horizonte um frêmito de palmas
E junto ao leito fundo de nossas duas almas
Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,
Seremos, na manhã, duas máscaras calmas
E felizes, de grandes olhos claros e rasgados...
Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,
Encheremos o céu de vôos encantados!...
E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,
Serão todos felizes, sem saber por quê...
Até os cegos, os entrevadinhos... E
Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,
Nós improvisaremos danças espantosas
Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cataventos!
VERANICO
Um par de tamanquinhos
Prova o timbre da manhã.
Será o Rei dos Reis,
Com os seus tamanquinhos?
Ei-lo que volta agora zumbindo num trimotor.
Um reflexo joga os seus dados de vidro.
alta
alta
E a minha janela é alta
Como o olhar dos que seguiram o vôo do primeiro balão
Ou como esses poleiros onde cismam imóveis as invisíveis cacatuas de
Deus.
* * *
(Nova Antologia Poética, Editora
Codecri, RJ, 1981)
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