DA PREGUIÇA COMO MÉTODO DE TRABALHO
O ovo
Quem olha um ovo, que parece um rosto sem
olhos, sem boca, sem nariz, tem vontade de pintar-lhe tudo isso que lhe falta.
Mas quem vê cara não vê coração! E na verdade não há nada mais infeliz que um
ovo quando o coitado, ainda por cima, está choco... Vive num constante medo que
o derrubem... Pior ainda: que o ponham numa omelete... e adeus, lindo pintinho
das suas entranhas!
Já afirmava certo sábio que o ovo é o que mais
importa, não passando a galinha de um mero pretexto da Natureza para produzir
outro ovo. O tal sábio, que, pelo visto, nada tinha de galináceo, também não
tinha nada de humano. Eu talvez tenha a tendência de humanizar as coisas. Mas
imagino o alvoroçado cacarejo de uma franguinha nova ao botar o primeiro ovo: “Enfim!
Já sou mulher!”
Mas esse assunto do ovo não termina aqui,
está emocionalmente ligado à minha infância, que nesse ponto foi uma infância
infeliz porque naqueles tempos os livros de histórias vinham todos de Portugal
e os pintinhos (nem queiram saber!), esses frementes novelos de vida que são os
pintinhos, chegavam aqui com o nome de “pintainhos”!
As horas
Nunca perguntes que horas são na presença
de um defunto.
Na aurora do mundo
A primeira criatura que pensou numa outra
criatura ausente, como deve ter-se espantado! Não sabia que se tratava do seu
primeiro pensamento humano.
Anacronismo
O Brasil é o único país do mundo em que ser
comunista ainda é sinal de idéias avançadas.
Diferença
As mulheres só pensam numa coisa... Os
homens pensam também em outras coisas.
Nós, os sapatos
Havia, não me lembro agora se no País das
Maravilhas da Alice ou se na Cidade de Oz, uma velha que morava num sapato...
E nós, que moramos em caixas de sapatos!
Fatos consumados
...
E se eles te apertarem muito sobre o que quiseste dizer com um poema,
pergunta-lhes apenas o que Deus quis dizer com este mundo...
Dona Gertrudes
Os
seios de dona Gertrudes vão tremelicando como dois pudins de creme carregados
numa bandeja...
As pernas de dona Gertrudes, torneadas como
pernas de mesa de bilhar, também terminam nuns pezinhos ridiculamente
minúsculos...
Imagino dona Gertrudes de biquíni e tapo os
olhos.
Efeitos colaterais
- Puxa! Você está com uma cara de bolo
abatumado...
- É que... é que eu tomei uma droga para
dormir...
- E daí? Não fez efeito?
- Sim, deve ter feito... Mas eu passei a
noite inteira sonhando que estava acordado!
Vigilantes noturnos
Os que fazem amor não estão fazendo apenas
amor, estão dando corda ao relógio do mundo.
O bebê anônimo
Um ser humano só é ele mesmo enquanto os
pais ainda estão discutindo um nome para o batizar. Até então é anônimo como um
animalzinho sem dono, simples filho da Natureza e de mais ninguém. Sem laços de
parentesco e outras contingências sociais. E, depois, está correndo o risco de lhe
darem um desses horrendos nomes tradicionais de família.
Do impossível suspiro
Na minha família, felizmente, deixaram de
aparecer, desde a penúltima geração, as Serafinas e Genovevas. A boa, a querida
vovó Genoveva! O seu único defeito era ser tão antieufônica... Como seria
possível a um namorado suspirar um nome desses?!
Relações com a URSS
Em 1965, Sergei Igor, lá em Moscou, estava
traduzindo, para a revista russa Letras
estrangeiras, o meu Sapato florido
e até mandou-me perguntar indiretamente o que queria eu dizer ao certo com “Vira-lua”.
Escrevi-lhe explicando as conexões deste com o consabido vira-latas e tive a
ingenuidade de acrescentar o seguinte p. s.: “E os direitos autorais?”
Não recebi nem a revista.
Entomologia
Ah, essas horrendas classificações
científicas... Mas a libélula é tão linda que o seu nome científico é libélula
mesmo...
*
* *
“Da
Preguiça como Método de Trabalho” – 2ª edição 2007, 1ª reimpressão 2009,
Editora Globo S. A., SP
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