AS COVAS
O bicho,
quando quer fugir dos outros,
faz um buraco na terra.
O homem,
para fugir de si,
fez um buraco no céu.
IMPERCEPTIVELMENTE
Agora toda essa preocupação com o ano 2.000! Só pode ser a velha mania ou superstição da conta redonda.
Se vocês estão bem lembrados, ao aproximar-se o Ano Mil já se pensava que era o FIM DO MUNDO. Assim mesmo, com todas as letras maiúsculas. Tanto que, para adiantar o serviço, muitos se mataram antes. Como exemplo, eis um ponto em que hoje todos estão concordes: o famoso Século XIX só foi terminar em 1914. E parece que o danado só começou depois da batalha de Waterloo...
Pois não é que uma dessas entrevistadoras veio indagar de mim um dia destes se estávamos no fim de uma Era?!
Não sou nenhum Nostradamus, de modo que vaticinei – menos obscuramente que este – que nunca se saberá, nunca se notará, nunca se verá o fim de coisa nenhuma.
E isto simplesmente porque a vida é contínua.
Não uma projeção imóvel de slides, mas o desenrolar de um filme em câmara lenta.
E a transformação da face do mundo é como a transformação da cara da gente, que muda tanto durante toda a vida – mas que, dia a dia, de ontem para hoje, de hoje para amanhã, sempre nos parece a mesma cara no espelho.
Deixemos, pois, o Ano Dois Mil chegar imperceptivelmente como um ano qualquer.
LINGUAGEM
Não sei que crítico notou que os grandes humoristas escrevem clássico. Um exemplo, entre nós: o velho Machado de Assis.
Mas não será isso porque os autores clássicos adquirem forçosamente, com o tempo, um toque de humor? Um toque que decerto não era deles e que reside para nos, seus pósteros, no tom cada vez mais arcaico da sua linguagem.
Nem deve ser por outro motivo que às vezes se ouve, na voz tempestuosa dos Profetas, mercê das antigas traduções da Bíblia, certa nota de humor.
Mas não se iluda. Nosso Senhor não tem o mínimo “sense of humour”. Nosso Senhor leva tudo a sério. Com Ele não há fugir. Com Ele não há a escapatória do sorriso, essa arma predileta do Demônio, isto é, aquele que é também chamado o Espírito da Dúvida.
HISTÓRIA URBANA
Dona Glorinha lê o convite de enterro de João, cujo sobrenome não declaro aqui, para evitar essas divertidas e constrangedoras explicações e declarações de nome igual, mera coincidência, etc. Dona Glorinha conhecera João “no seu tempo” de ambos e depois nunca mais o tinha visto – pois constitui um dos mistérios labirínticos das cidades grandes isso de conhecidos e namorados se perderem definitivamente de vista. Dona Glorinha, pensando isto mesmo com outras palavras, vai ao velório de João, encaminha-se direito a ele, ergue-lhe o lenço da face, exclama: “Mas como ele está bem conservado!”
* * *
(“A Vaca e o Hipogrifo”, L&PM Editora, 3ª Edição, Editora Garatuja, Porto Alegre, 1979)
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