A CANÇÃO
Enquanto os teus olhos ainda estão cerrados sobre os mistérios noturnos da alma
E o dia ainda não abriu as suas pálpebras,
Nasce a canção dentro de ti como um rumor de águas,
Nasce a canção como um vento despertando as folhagens...
Não vem de súbito, vem de longe e de muito tempo.
Mas – agora – estás desperto na cidade e não sabes,
Entre tantos rumores e motores,
Como é que tens de súbito esta serenidade
De quem recebesse uma hóstia em pleno inferno.
Deve ser de versos que leste e nem te lembras,
De telas, de estátuas que viste,
De um sorriso esquecido...
E destas sementes de beleza
É que
- às vezes –
No chão do rumoroso deserto em que pisas,
Brota o milagre da canção!
PORTO PARADO
No movimento
lento
das barcaças
amarradas
o dia,
sonolento
vai inventando as variações das nuvens...
UM RETRATO
Seus olhos grandes, redondos e pretos
Tempos depois ainda ficavam pregados na gente
Como botões...
ENCONTRO
“Olhe! Me disse um dia a Condessa de Noailles,
durante a última Exposição de Pássaros,
Olhe aquele pássaro...”
Pobre comediante!...
Pelo tom irremediável da sua voz
Eu bem compreendi que ela já estava morta há muito tempo!
O ÚLTIMO VIANDANTE
Era um caminho que de tão velho, milha filha,
já nem sabia mais aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos!
VIAGEM DE TREM
Esses burrinhos pensativos que a gente
encontra às vezes na estrada dispensam
a gente de pensar...
AS COISAS
O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
- Essas coisas que parece
não terem beleza
nenhuma
– é simplesmente porque
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar!
A MUDANÇA
Para a Sandra
A alegre, a festiva agitação das panelas e tachos
A inútil zanga dos velhos armários de mogno, solenes,
Achando tudo aquilo uma grande palhaçada...
As xícaras e pires fazendo tlin-tlin-tlin-tlin
As gaiolas dos passarinhos cantando em coro com os
[próprios passarinhos
Oh! A alegria das coisas com aquela mudança
Para onde? Não importa! Desde que não seja
Este eterno mesmo lugar!
MORGUE
Minha alma gelou nas prateleiras!
* * *
(“A Cor do Invisível”, 2ª Edição, Editora Globo, SP, 1994)
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