TÃO LENTA E SERENA E BELA
Tão lenta e serena e bela e majestosa vai passando a vaca
Que, se fora na manhã dos tempos, de rosas a coroaria
A vaca natural e simples como a primeira canção
A vaca, se cantasse,
Que cantaria?
Nada de óperas, que ela não é dessas, não!
Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,
Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!
Cantaria o cheiro dos trevos machucados.
Ou, quando muito,
A longa, misteriosa vibração dos alambrados...
Mas nada de superaviões, tratores, êmbolos
E outros truques mecânicos!
BILHETE
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
EU NADA ENTENDO
Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente.
Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...
E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...
Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...
MINHA RUA
Minha rua está cheia de pregões.
Parece que estou vendo com os ouvidos:
“Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!”
Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos.
Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões
Horrorizado as mãos em teus ouvidos?
Anda: escutemos esses palavrões
Que trocam dois gavroches atrevidos!
Pra que viver assim num outro plano?
Entremos no bulício quotidiano...
O ritmo da rua nos convida.
Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista... Não,
Meu pobre Anjo... É... simplesmente... a Vida!
* * *
(“Nariz de Vidro”, 9ª Edição, Ed. Moderna, SP, 1984)
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Crédito: Foto - Galeria de LESLIEVELLE64 - Detalhes da escultura “ Les Gavroches”, em Valletta, Malta, obra do escultor maltês Antonio Sciortino (25-Jan-1879 – 10-Ago-1947), inspirado no escultor Auguste Rodin (Paris 12-Nov-1840 – Meudon 17-Nov-1917).
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