DAS METAMORFOSES
A lua, quando fica velha, todo o mundo sabe que vira lua nova.
Mas negro velho vira macaco. Desses macaquinhos de realejo... Cuidado! Quanto mais velhos mais vivos. Sabem tudo. Descobrem tudo. Se tens algum pecado oculto, foge das suas caretas falsamente amigas, dos seus olhinhos espertos e cínicos!
E os velhos jurisconsultos viram fetos...esses fetos que a gente olha, meio desconfiado, nos bocais de vidro... e que, no silêncio dos laboratórios, oscilando gravemente as cabeças fenomenais, elucubram anteprojetos, orações de paraninfo, reformas da Constituição... Sempre que puderes, crava um punhal, um garfo, um prego, no miolo mole dos fetos.
Em compensação, as velhinhas que fazem renda viram fio... Fio, sim senhor! Esses fios que vagam soltos no ar... que ninguém sabe de onde vêm... e se prendem num galho morto... no chapéu do viajante solitário... no freio do seu cavalo... que se prendem, desesperadamente, num lábio fresco, numa trança ao vento...
E os velhos que mal podem acender os cigarros, os pobres velhinhos trêmulos viram reflexos... Esses reflexos que dançam no ar... que nascem no ar... De uma vidraça... de um pára-brisa... do galo do pára-raio que volteou de súbito... de folhas que se assustam... de mariposas tontejando... de uma ronda infantil sob a lua redonda...
OS VIRA-LATAS
Todos lhes dão, com uma disfarçada ternura, o nome, tão apropriado, de vira-latas. Mas e os vira-luas? Ah! Ninguém se lembra desses outros vagabundos noturnos, que vivem farejando a lua, fuçando a lua, insaciavelmente, para aplacar uma outra fome, uma outra miséria, que não é a do corpo...
MOMENTO
O homem parou, cheio de dedos, para procurar os fósforos nos bolsos. A insidiosa frescura do mar lhe mandou um pensamento suicida. E veio um riso límpido e irresistível – em i, em a, em o – do fundo de um pátio da infância. Um riso... Senão quando o homem achou os fósforos e a vida recomeçou. Apressada, implacável, urgente. A vida é cheia de pacotes...
O BAR
O doloroso sulco lábio-nasal junto à garrafa morta...
O ESTRANHO CASO DE MÍSTER WONG
Além do controlado Dr. Jekyll e do desrecalcado Míster Hyde, há também um chinês dentro de nós: Míster Wong. Nem bom, nem mau: gratuito. Entremos, por exemplo, neste teatro. Tomemos este camarote. Pois bem, enquanto o Dr. Jekyll, muito compenetrado, é todo ouvidos, e Míster Hyde arrisca um olho e a alma no decote da senhora vizinha, o nosso Míster Wong, descansadamente, põe-se a contar carecas na platéia...
Outros exemplos? Procure-os o senhor em si mesmo, agora mesmo. Não perca tempo. Cultive o seu Míster Wong.
CHÃO DE OUTONO
Ao longo das pedras irregulares do calçamento passam ventando umas pobres folhas amarelas em pânico, perseguidas de perto por um convite-de-enterro, sinistro, tatalando, aos pulos, cada vez mais perto, as duas asas tarjadas de negro!
A VINGANÇA
Se eu fosse Deus, em mandava os comendadores mortos (ah, como nos havíamos de rir, ó Walt Disney!) eu os mandava a todos, com as suas almas graves, encasacadas e de óculos, para o doido País das Sinfonias Coloridas.
PROVÉRBIO
O seguro morreu de guarda-chuva.
HORROR
Com os seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR é uma palavra de cabelos em pé, assustada da própria significação.
ARTE DE FUMAR
Desconfia dos que não fumam: esses não têm vida interior, não têm sentimentos. O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar...
“Sapato Florido” – Editora Globo, Porto Alegre, 1948
Ilustração: Da Capa da 1ª Edição de "Sapato Florido"
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