SÃO PAULO, 23 – Morreu ontem o trapezista René Bugler, internado quando o mastro em que fazia acrobacias, quebrou e ele caiu de uma altura de 10 metros. (Do noticiário)
A pantera é uma curva em movimento:
vai-se desenrolando como um desenho.
Mas a sua harmonia é linear como
a figura que, na sucessão de um friso,
repete-se, com o andante ritmo de um verso
num poema...
O trapezista,
entanto,
não quer a pauta de uma corda única
e a curva do seu vôo traça geometrias no espaço,
vai e volta, mergulha, sobe, entrelaça-se
como se brincasse consigo mesma.
Só não se brinca com a imperfeição das coisas...
e a tua dança aérea, ó pobre René Bugler,
interrompeu-se:
tombaste, da altura de 10 metros, os braços abertos em cruz
e a maravilhosa curva que traçavas
imobilizada de súbito num corpo inerte.
Sim, tu estás, agora, na reta horizontalidade da morte.
A morte odeia curvas, a morte é reta
como uma boca fechada.
Tenho até remorsos de fazer-te um poema...
O poema
- o poema da tua vida
está apenas nisto,
nestas simples palavras:
"René Bugler, trapezista,
morto aos 22 anos
no exercício de sua arte".
INTERROGAÇÕES
Nenhuma pergunta demanda resposta.
Cada verso é uma pergunta do poeta.
E as estrelas...
as flores...
o mundo...
são perguntas de Deus.
S.O.S. EM BABILÔNIA
Na cidade dos ruídos mecânicos, atrozes
- Onde as rãs, onde os grilos, onde as misteriosas vozes
que urdiam a rede dos côncavos silêncios noturnos?
Os arroios se foram no ralo agonizantes das pias...
As últimas procissões
com as suas campânulas cada vez mais remotas
vão andando de costas como num filme passado às avessas...
(Eu estou gravando este lento poema nas paredes de uma cela)
LUNAR
As casas cerraram seus milhares de pálpebras.
As ruas pouco a pouco deixaram de andar.
Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças.
Tudo está sob a encantação lunar...
E que importa se uns nossos artefactos
lá conseguiram afinal chegar?
Fiquem armando os sábios seus bodoques:
a própria lua tem sua usina de luar...
E mesmo o cão que está ladrando agora
é mais humano do que todas as máquinas.
Sinto-me artificial com esta esferográfica.
Não tanto... Alguém me há de ler com um meio sorriso
cúmplice... Deixo pena e papel... E, num feitiço antigo,
à luz da lua inteiramente me luarizo...
PAISAGEM
Sol e sombra brincavam de esconder
sobre o rosto do primeiro morto.
Perto dele, cantavam as águas,
porque ainda apenas sabiam cantar.
Cantavam as águas inocentemente
sua canção de continuar...
- e ele também não sabia de nada!
VIDAS
Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem...
Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos apenas pó tapetando a paisagem.
Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.
E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...
Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?!
("APONTAMENTOS DE HISTÓRIA SOBRENATURAL" – 2ª Edição, Editora Globo, Porto Alegre, 1977)
* * *
Foto: Liane Neves – Mário Quintana no Hotel Royal – Do Livro "Mário Quintana", 1ª Edição, de Márcio Vassalo, página 48 - Editora Moderna, São Paulo, 2005
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