A modéstia é a vaidade escondida atrás da porta.
DA RECORDAÇÃO
A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha.
DA DIFÍCIL FACILIDADE
É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez.
DAS UTOPIAS
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!
ARTE POÉTICA
Esquece todos os poemas que fizeste.
Que cada poema seja o número um.
FATALIDADE
O que mais enfurece o vento
são esses poetas inveterados
que o fazem rimar com lamento.
COISAS
Uma rãzinha verde no gris da manhã...
Um sorriso na face de um ceguinho...
Uma nota aguda como uma pergunta de criança...
Um cheiro agradecido de terra molhada...
Um olhar que nos enche subitamente de azul...
COMO VAI A POESIA?
Naqueles longes tempos, ele era vítima de um cirurgião-dentista que, de repente, do outro lado da sala do café, da outra extremidade do bonde, da calçada oposta, lançava intempestivamente o seu vozeirão:
- Como vai a poesia?
Todas as cabeças que se achavam de permeio voltavam-se então para o Poeta. O Poeta, nu, desmascarado, em meio à multidão! Para evitar esses atentados ao pudor, ele afinal descobriu um meio: fazer a pergunta antes que o outro a fizesse. Mal avistava o dentista, e antes que este erguesse as trombetas de sua voz, que não lhe soavam propriamente como as trombetas da Fama, mas como as cornetas falhas da Difamação – bradava alvissareiro o Poeta:
- Como vai o maçarico?!
As cabeças de permeio voltavam-se então escandalizadas ou irônicas para o Cirurgião-Dentista. Não porque fosse uma vergonha utilizar esse útil instrumento, mas porque maçarico era mesmo uma palavra muito engraçada, uma palavra que rimava com a dança do sarapico-pico-pico e com surubico. O resultado de tudo isso foi que os papéis se inverteram: o dentista pegou medo do poeta.
BUSCA
Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí... Quanto filhotinho de estrela atirado no lixo!
AS VIAGENS
O mais confortador das viagens são esses burrinhos pensativos que vemos à beira da estrada e nos poupam assim o trabalho de pensar.
FRUSTRAÇÃO
Outono: essas folhas que tombam na água parada dos tanques e não podem sair viajando pelas correntezas do mundo...
O CHÁ, OS FANTASMAS, OS VENTOS ENCANADOS...
Nasci no tempo dos ventos encanados, quando, para evitar compromissos, a "gente bem" dizia estar com enxaqueca, palavra horrível mas desculpa distinta. Ter enxaqueca não era para todos, mas só para essas senhoras que tomavam chá com o dedo mindinho espichado. Quando eu via aquilo, ficava a pensar sozinho comigo (menino, naqueles tempos não dava opinião) por que é que elas não usavam, para cúmulo da elegância, um laçarote azul no dedo...
Também se falava misteriosamente em "moléstias de senhoras" nos anúncios farmacêuticos que eu lia. Era decerto uma coisa privativa das senhoras, como as enxaquecas, pois as criadas, estas, não tinham tempo para isso. Mas em compensação, me assustavam deliciosamente com histórias de assombrações. Nunca me apareceu nenhuma.
Pelo visto, era isto: nunca consegui comunicar-me com este nem com o outro mundo. A não ser através do Tico-tico e da poesia de Camões – do qual até hoje me assombra este verso único:
"Que o menor mal de tudo seja a morte!"
Pois a verdadeira poesia sempre foi um meio de comunicação com este e com o outro mundo.
* * *
("Sapo Amarelo" – 5ª Edição, Editora Global, São Paulo, SP, 2006)
Ilustração: Liana Timm para QUINTANA DOS 8 AOS 80, Relatório da Diretoria da SAMRIG, 1985
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