I
Nossos gestos eram simples e transcendentais.
Não dissemos nada
nada de mais...
Mas a tarde ficou transfigurada
- como se Deus houvesse mudado
imperceptivelmente
um invisível cenário.
II
Eu te amo tanto que
sou capaz de nos atirarmos os dois na cratera do Fujy-Yama!
Mas, aqui,
o amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama
depois que cada um partiu – sem saionara nem nada –
por uma porta diferente.
III
E em que mundo? Em que outro mundo vim parar,
que nada reconheço?
Agora, a tua voz nas minhas veias corre...
o teu olhar imensamente verde ilumina o meu quarto.
O LÍMPIDO CRISTAL
Que límpido o cristal de abril!... Um grito
não vai como os da noite – para os extramundos...
Todas as vozes, todas as palavras ditas – cigarras presas
dentro do globo azul – vão em redor do mundo
e a ninguém é preciso entender o que elas dizem;
basta aquele bordoneio profundo
que vibra com o peito de cada um...
palavras felizes de se encontrarem uma com a outra
nas solidões do mundo!
NOTURNO CITADINO
Um cartaz luminoso ri no ar.
Ó noite, ó minha nega
toda acesa
de letreiros!... Pena
é que a gente saiba ler... Senão
tu serias de uma beleza única
inteiramente feita
para o amor dos nossos olhos.
BIOGRAFIA FANTASMAL
Celeste Bogari... em que recanto
da vida esse teu nome busco?
Ou te criaste apenas
nos delírios mansos
da minha memória?
Mas eu tenho a vaga... não, Celeste, eu tenho a nítida
impressão de que eras
cor de canela: assim dizia-se então...
E a tua voz – cristal puro –
ondulava no ar que nem vidro soprado
o ritmo das boas que se usavam no palco.
Ao mesmo ritmo delas...
e com a mesma envolvente brancura...
Ah, o teu ingênuo sonho de branquidão!
E esse teu nome tão lindo, e ridículo e triste, Celeste Bogari...
nem precisas contar-me como foi a tua história
- se é que um dia exististe.
VIAGEM ANTIGA
Aqui e ali
reses pastando imóveis
como num presépio
a mata ocultando o xixi das fontes
uma cidadezinha de nariz pontudo
furava o céu
depois sumia-se lentamente numa curva
e a gente olhava olhava
sem nenhuma pressa
porque o destino daquelas nossas primeiras viagens
era sempre o horizonte
SELVA SELVAGGIA
As palavras espiam como animais:
umas, rajadas, sensuais, que nem panteras...
outras, escuras, furtivas raposas...
mas as mais belas palavras estão pousadas nas frondes
mais altas, como pássaros...
O poema está parado em meio da clareira.
O poema
caiu
na armadilha! debate-se
e ora subdivide-se e entrechoca-se como esferas
de vidro colorido
ora é uma forma algébrica
ora, como um sexo, palpita... Que importa
que importa qual seja enfim o seu verdadeiro universo?
Ele em breve será inteiramente devorado pelas palavras!
OS RETRATOS
Os antigos retratos de parede
não conseguem ficar longo tempo abstratos.
Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados
porque eles nunca se desumanizam de todo.
Jamais te voltes para trás de repente.
Não, não olhes agora!
O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...
Sem fim e sem sentido...
Dessas que a gente inventava para enganar a solidão dos caminhos sem lua.
* * *
(Esconderijos do Tempo – Ed. Globo, São Paulo, 1995)
Ilustração: Laura Beatriz – Escaneada do livro (página 23) e editada.
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