Noite alta,
na soçobrante Nau exposta aos quatro ventos,
em pleno céu sulcado de relâmpagos,
os marinheiros mortos trovejam palavrões.
Ó velhos marinheiros meus avós...
para eles ainda não terminou a espantosa Era dos Descobrimentos!
Santa Bárbara
e São Jerônimo,
transidos de divino amor,
escutam suas pragas como orações.
Quando eu acordar amanhã, livre e liberto como uma asa
vou rezar a São Jerônimo
vou rezar a Santa Bárbara
por este nosso fim de século – pobre Nau perdida no nevoeiro
- que em vão busca o rumo
das eternas, das misteriosas Américas ainda por descobrir!
POEMA TRANSITÓRIO
Eu que nasci na Era da Fumaça: - trenzinho
vagaroso com vagarosas
paradas
em cada estaçãozinha pobre
para comprar
pastéis
pés-de-moleque
sonhos
- principalmente sonhos!
Porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar:
elas suspirando maravilhosas viagens
e a gente com um desejo súbito de ali ficar morando
sempre... Nisto,
o apito da locomotiva
e o trem se afastando
e o trem arquejando
é preciso partir
é preciso chegar
é preciso partir é preciso chegar...
Ah, como esta vida é urgente!
... no entanto
eu gostava era mesmo de partir...
e – até hoje – quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas.
ERA UM LUGAR
Era um lugar em que Deus ainda acreditava na gente...
Verdade que se ia à missa quase só para namorar mas tão inocentemente que não passava de
um jeito, um tanto diferente, de rezar enquanto, do púlpito, o padre clamava possesso contra pecados enormes.
Meu Deus, até o Diabo envergonhava-se. Afinal de contas, não se estava em nenhuma Babilônia...
A CASA FANTASMA
A casa está morta?
Não: a casa é um fantasma,
um fantasma que sonha
com a sua porta de pesada aldrava,
com os seus intermináveis corredores
que saíam a explorar no escuro os mistérios da noite
e que as luas, por vezes,
enchiam de lívido assombro...
Sim!
Agora
a casa está sonhando
com o seu pátio de meninos pássaros.
A casa escuta... Meu Deus! A casa está louca, ela não sabe
que em seu lugar se ergue um monstro de cimento e aço:
há sempre uma cidade dentro de outra
e esse eterno desentendido entre o Espaço e o Tempo.
Casa que teimas em existir
- a coitadinha da velha casa!
Eu também não consegui nunca afugentar meus pássaros...
(“Baú de Espantos”, 4ª edição, Editora Globo, RJ, 1988)
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