OS MEUS SAPATOS CONTINUARÃO ANDANDO
O ESPECTADOR
Olhar a televisão
Sem prestar atenção,
Ver apenas figuras a moverem-se na tela
E só assim talvez terei alguma compreensão
Da nossa vida e do sentido dela...
O VISITANTE
Aquele morto voltou para assistir à primeira reunião familiar
E retirou-se agradecido
Ao ver que seus saudosos parentes estavam falando em outras coisas...
AS TIAS
Sempre estão nos acusando de alguma coisa,
Com o dedo em riste: “Meninos, não façam isto!
Não presta deixar os sapatos virados no chão com a sola para cima.
Nem nunca puxar dessa maneira as tranças da Adalgiza!”
No entanto não sabem
Que as crianças no fundo gostam disso
E que a violência é uma das formas mais deliciosas do amor...
A gente grande só tem ridículas briguinhas conjugais
Apenas para poderem se reconciliar depois!
Ai de nós, de nossa vida com elas...
As nossas intrometidas tias são eternas e de todos os sexos!
A MÚSICA E A LETRA
Os pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo,
Eles é que vão sucessivamente improvisando
- um após outro –
A letra e a música dos ventos...
O VENTO E EU
O vento morria de tédio
Porque apenas gostava de cantar
Mas não tinha letra alguma para a sua própria voz,
Cada vez mais vazia...
Tentei então compor-lhe uma canção
Tão comprida como a minha vida
E com aventuras espantosas que eu inventava de súbito,
Como aquela em que menino eu fui roubado pelos ciganos
E fiquei vagando sem pátria, sem família, sem nada neste vasto mundo...
Mas o vento, por isso
Me julga agora como ele...
E me dedica um amor solidário, profundo!
COMPENSAÇÃO
Na inocência da Natureza
Todos têm a beleza do que eles próprios são.
Por isso é que os monstros
- por mais que eles assustem crianças e adultos –
Têm sempre os olhos azuis...
QUANDO EU ME FOR
Quando eu me for, os caminhos continuarão andando...
E os meus sapatos também!
Porque os quartos, as casas que habitamos,
Todas, todas as coisas que foram nossas na vida
Possuem igualmente os seus fantasmas próprios,
Para alucinarem as nossas noites de insônia!
* * *
(De “Velório sem defunto” – Mercado Aberto, Porto Alegre, 1990)
Foto: Liane Neves
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