- PORTA GIRATÓRIA -
ESTETICAMENTE FALANDO
Angela Maria, desta capital, escreve-me
perguntando o que é que eu penso do newer
look, isto é, do decreto dos grandes costureiros de Paris, que houveram por
bem abolir as saias compridas...
Sei que seria de bom-tom, Angela Maria,
optar galantemente pela saia curta e pôr umas reticências no fim da frase...
Mas não o faço, porque assim não penso, e o bom-tom não me fica bem. O fato é
que, esteticamente falando, acho mais bela a saia comprida.
Também poderia alegar que não sou
cronista elegante e que a última palavra no assunto deveria caber às mulheres.
Mas sei que não é assim. Basta lembrar
que os grandes nomes da moda, os grandes figurinistas, são todos homens e não
mulheres, tanto hoje como no passado.
As mulheres limitam-se a seguir a moda,
por mais horrível que seja, e riem-se hoje da moda que elas mesmas usavam
alguns anos atrás, por mais bela que fosse...
Humm! Estou sentindo que você não está
gostando... Mas o que eu disse não tem a mínima importância: foi pura vingança,
juro, por você me haver consultado sobre um assunto que não me fica bem.
Repito que isso da moda ser feia ou
bonita é coisa que não tem mesmo importância nenhuma. Nem para as mulheres, nem
para os homens. Principalmente para os homens, porque o amor é cego...
Agora sim, fui galante! Ou não fui?
PERGUNTAS ENTRECRUZADAS
O que há de triste no restaurante é que,
quando a gente começa com muita exigência, eles acabam dizendo: “Se quer tudo a
seu gosto mesmo, por que não come em casa?”
E o que há de mais triste é que em casa
sempre acabam alegando: “Se você quer mesmo do bom e do melhor, e na hora, por
que é que não vai comer no restaurante?”
CABEÇA DE CATAVENTO
Bem o sabemos: tudo se interpreta num
mesmíssimo segundo, mas Dona Lógica, uma senhora meticulosa e de óculos, separa
e aloja tudo em cada compartimento: nada de promiscuidades. Foi ela quem
inventou a gramática e as vírgulas.
Ora, um dos encantos de Gabriela
consiste, por isso mesmo, na ausência de pontuação em seu pensamento, que vai
fluindo e cantando como um arroio. Diz ela:
– Vi na igreja uma velha rezando parecia
que estava bebendo água num pires Deus me perdoe mas por que puseste essa
horrível gravata verde ainda não foste ver o último filme com o John Lennon...
Aqui uma pausa. Respiro. Gabriela
suspira e diz:
– Um amor!
ZOOLOGIA
As damas ricas da Austrália têm cada uma
um canguru de estimação, com quem vão fazer compras no supermercado.
QUEM SOMOS?
Todas as nossas carteiras de identidade
são falsas. E a primeira curiosidade de quem morreu é saber qual é mesmo o seu
verdadeiro nome.
E AS COISAS, O QUE SÃO?
Um dos espantosos mistérios da poesia é
que uma coisa só parece ela própria quando é comparada a outra coisa.
ANJO NO CONSULTÓRIO
– E quando olho para cima, doutor, me dá um bruto
medo de cair do Céu...
O CITADINO
Um lugar só é bom quando a gente pode
fugir para outro lugar.
Não compreendo esses grandes hotéis
sozinhos no meio da mata, sob a alegação do clima, da natureza... A natureza é
chata como um cartão-postal em tamanho natural.
Nós somos os promíscuos habitantes da
cidade. A cidade é que é a nossa verdadeira natureza. Com incômodos, sim, mas
muito mais variados que os da natureza propriamente dita.
E a minha volúpia que mais se aproxima
da primitiva natureza é andar sem sapatos alta noite, entre o quarto e o
banheiro, pelos corredores do prédio onde resido.
DAS INDAGAÇÕES METAFÍSICAS
Cuidado! as esfinges alimentam-se exclusivamente
de miolos...
NATUREZA VIVA
Há trovões arrastando pesados móveis,
enormes cômodas pelo céu. Há outros que trabalhar não é com eles e ficam resmungando,
num desvão. Por fim atracam-se. As lâmpadas, lá-alto, queimam-se em sucessivos
relâmpagos, enquanto o poeta descarrega os nervos. Até que tudo vasa e se
extravasa sobre o desespero dos guarda-chuvas em fuga e a verde alegria das
árvores.
OS MALES DA PERFEIÇÃO
Corre entre os anjos um boato que aqui
transcrevo por conta deles. Deus, cansado de ser infinitamente bom, resolve às
vezes trocar de lugar com o Diabo. E, nessas épocas de interinidade, sempre sai
ganhando longe do outro.
O ADULTO E A BANANA
Não há quem goste de bananas como sobremesa.
Mas sim fora de horas. E, ainda por cima, têm de ser roubadas da fruteira, na
sala.
Qualquer leitor não me venha agora dizer
que com ele não acontece o mesmo. Acontece... para maior alegria póstuma do bom
velho Darwin, com mais esta bela prova da nossa origem macacal.
MINIPAISAGENS
As janelinhas do trem, ao longo da
estrada, vão tirando sucessivos cartões-postais da paisagem, o que sempre é
melhor do que a gente ficar no meio de um vasto panorama – como uma vaca no
campo.
DEPRAVAÇÕES DO GOSTO
Empoleiro-me numa lanchonete. Peço
iogurte.
–
Iogurte limão?
– Não!
– Ah, tem iogurte morango.
– Mas não tem iogurte puro?
Pura é a inocência minha. Pois tudo o
que preferem agora é com gosto de outra coisa e não da própria coisa. Peço uma
mineral. Oferecem-me mineral limão, mineral laranja etc. Procuro uma barra de
chocolate. Vejo que é “flavorizado”, como lá diz no invólucro. É quase
impossível hoje em dia encontrar chocolate com gosto de chocolate, iogurte com
gosto de iogurte, ou uma democracia apenas democrática.
*
* *
(“Porta
Giratória” – Editora Globo, São Paulo, SP, 1988)
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