- A VACA E O HIPOGRIFO -
HAI-KAI
Em meio da ossaria
Uma caveira piscava-me...
Havia um vagalume
dentro dela.
BRANCA
Ela era quase incolor: branca, branca,
de um branco que não se usa mais...
Mas tinha a alma
furta-cor!
HISTÓRIA QUASE MÁGICA
O Idiota da Aldeia gostava de coisas
brilhantes.
Mal nos respondia: éramos apenas
gentes...
Mas uma noite o surpreendi falando
longamente a um trinco de porta redondo, luzente de luar.
Só vos digo,
ao que parece,
que o brilho do metal abrandava, ora
fulgia mais,
como se por instantes ouvisse e depois
respondesse.
Só vos digo que,
nestes ocultos assuntos, nada se pode dizer...
INTENÇÕES
Os que andam com segundas intenções não
conseguem enganar ninguém. Está na cara... O perigo mesmo – porque é invisível –
está nos que têm terceiras intenções.
VERBETE
Autodidata. – Ignorante por conta própria.
POEMA ENTREDORMIDO AO PE DA LAREIRA
O anjo depenado tremia de frio
mas veio o Conde Drácula e emprestou-lhe
a sua capa negra.
Na litografia da parede
Helena a bela grega
mantém sua pose olímpica... Desloca-se um
tição:
uma chama
começa a lamber
como um gato minha perna de pau.
OUTRO PRINCÍPIO DE INCÊNDIO
... a tua cabeleira feita de chamas
negras...
RELAX
Aquele monstro que se chamou Champollion
descansava de seus estudos de egiptologia escrevendo uma gramática chinesa.
Porém, nós outros, os (relativamente)
normais, que havemos de fazer?
Palavras cruzadas?
No entanto, o perigo das palavras cruzadas
é nos inocularem às vezes, para todo o sempre, os mais estapafúrdios
conhecimentos. Por exemplo, há duas semanas sou sabedor de que “rajaputro”
significa “nobre do Hindostão, dedicado à milícia”. Espero, o quanto antes,
esquecer tal barbaridade.
O problema é substituir as preocupações
pela ocupação.
Quanto ao exercício da poesia, nem falar! Qualquer
poeta sabe como dói, como é preciso virar a alma pelo avesso para fazer um
verdadeiro poema – salvo se você for um poeta concretista, porque, na verdade,
não há nada mais abstrato.
Pois bem, falando em coisas sérias, o
problema, seu poeta, é ocupar o espírito sem ao mesmo tempo estraçalhá-lo.
E problemas assim – puros problemas – só mesmo
os problemas matemáticos. Já o velho Pinel recomendava o estudo das Ciências
Exatas como preservativo dos distúrbios mentais.
A Matemática é o pensamento sem dor.
Mas infelizmente sucede que a Matemática
ainda é pior do que chinês para nós, que, nesta altura da vida, só não
esquecemos as quatro operações e, quando muito a regra de três e também a
teoria dos arranjos, permutações e combinações – tão útil no jogo do bicho.
Que resta, então?
Oh! Como é que eu não me lembrei disso
antes?! Resta-nos um passatempo esquecido: o proveitoso, o delicioso vício da
leitura.
DE COMO NÃO LER UM POEMA
Há tempos me perguntaram umas menininhas,
numa dessas pesquisas, quantos diminutivos eu empregara no meu livro “A Rua dos
Cataventos”. Espantadíssimo, disse-lhes que não sabia. Nem tentaria saber,
porque poderiam escapar-me alguns na contagem. Que essas estatísticas, aliás,
só poderiam ser feitas eficientemente com o auxílio de robôs. Não sei se as
menininhas sabiam ao certo o que era um robô. Mas a professora delas, que
mandara fazer as perguntas, devia ser um deles.
E mal sabia eu, então, que estava dando um
testemunho sobre o estruturalismo – o qual só depois vim a conhecer pelos seus
produtos em jornais e revistas. Mas continuo achando que um poema (um
verdadeiro poema, quero dizer), sendo algo dramaticamente emocional, não
deveria ser entregue à consideração de robôs, que, como todos sabem, são
inumanos.
Um robô, quando muito, poderá fazer uma meticulosa
autópsia – caso fosse possível autopsiar uma coisa tão viva como é a poesia.
Em todo caso, os estruturalistas não deixam
de ter o seu quê de humano...
Nas suas pacientes, afanosas, exaustivas
furungações, são exatamente como certas crianças que acabam estripando um
boneco para ver onde está a musiquinha.
SERENIDADE
As caretas do Charlton Heston – pelo menos
a mim não dizem nada, mas até hoje, passados tantos anos, impressiona-me a
cara-de-pau de Buster Keaton. Quem havia de dizer que o primeiro lembra mais o
seu antepassado simiesco e o segundo uma estátua grega? Essa misteriosa
serenidade que há por detrás de toda verdadeira arte é que nos faz curtir os
clímax mais trágicos. E, quando conseguimos transportá-la a nós, é ela que nos
faz aceitar este mundo tal como ele é.
* * *
(“A Vaca e o
Hipogrifo”, L&PM Editora, 3ª Edição, Editora Garatuja, Porto Alegre, 1979)
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