COMUNHÃO
Os verdadeiros poetas não lêem os
outros poetas. Os verdadeiros poetas lêem os pequenos anúncios dos jornais.
PASSARINHO EMPALHADO
Quem te empoleirou lá no alto do
chapéu da contravó, tico-tico surubico? Tão triste... tão feio... tão só... Meu
tico-tiquinho coberto de pó... E tu que querias fazer o teu ninho na máquina do
Giovanni fotógrafo!
GARE
Faz tanto tempo que se está
esperando – o trem que não vem, o trem de Belém – que as bagagens alheias,
amontoadas no banco, cheiram-me a poeira de séculos: devem estar aqui,
embolorando, o caduceu de Mercúrio, a cabeleira de Absalão, uma peça íntima de
Cleópatra, um báculo de bispo, uma tabaqueira de Luiz XV, um ôlho de vidro, uma
fivela, uma bôlsa de água quente, um lenço com um nó, um... Pestanejo. Sinto-me
tão infeliz... Para que me fui meter nesse triste inventário, meu Deus? E, a
cada suspiro que dou, o meu anjo da guarda perde mais uma peninha da asa.
ESTUFA
Que imaginação depravada têm as
orquídeas! A sua contemplação escandaliza e fascina. Vivem procurando e criando
inéditos coloridos, e estranhas formas, combinações incríveis, como quem
procura uma volúpia nova, um sexo novo...
AVENTURA NO PARQUE
No banco verde do parque, onde eu
lia distraidamente o Almanaque Bertrand, aquela sentença pegou-me de surprêsa: “Colhe
o momento que passa.” Colhi-o, atarantado. Era um não sei quê, um flapt, um inquietante animalzinho, todo
asas e todo patas: ardia como uma brasa, trepidava como um motor, dava uma
angustiosa sensação de véspera de desabamento. Não pude mais. Arremessei-o
contra as pedras, onde foi logo esmigalhado pelo vertiginoso velocípede de um
meninozinho vestido à marinheira. “Quem monta num tigre (dizia, à página
seguinte, um provérbio chinês) quem monta num tigre não pode apear.”
O ESPIÃO
Bem o conheço. Num espelho de
bar, numa vitrina, ao acaso do footing, em qualquer vidraça por aí, trocamos às
vêzes um súbito e inquietante olhar. Não, isto não pode continuar assim. Que
tens tu de espionar-me? Que me censuras, fantasma? Que tens a ver com os meus
bares, com os meus cigarros, com os meus delírios ambulatórios, com tudo o que
não faço na vida!?
APARIÇÃO
Tão de súbito, por sôbre o perfil
noturno da casaria, tão de súbito surgiu, como um choque, um impacto, um
milagre, que o coração, aterrado, nem lhe sabia o nome: - a lua! – a lua ensangüentada
e irreconhecível de Babilônia e Cartago,
dos campos malditos de após-batalha, a lua dos parricídios, das populações em
retirada, dos estupros, a lua dos primeiros e dos últimos tempos.
A BELA E O DRAGÃO
As coisas que não têm nome
assustam, escravizam-nos, devoram-nos... Se a bela faz de ti gato e sapato,
chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA. E ei-la rotulada, classificada,
exorcismada, simples marionete agora, com todos os gestos perfeitamente
previsíveis, dentro do seu papel de boneca de pau. E no dia em que chamares a
um dragão de JOLI, o dragão te seguirá por tôda parte como um cachorrinho...
EPÍLOGO
Não, o melhor é não falares, não
explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada agüenta mais nada. E
sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um
castelo de cartas! Não se sabe... Umas vêzes passa uma avalanche e não morre
uma môsca... Outras vêzes senta uma môsca e desaba uma cidade.
QUEM BATE?
Cecília. Cecília que chega de um
pátio da infância... Traz ainda sereno nas tranças, seus sapatinhos andaram
pulando na grama... Depois assenta-se nos degraus da tôrre, e canta...
Mas o chaveiro do sonho pegou-lhe
as tranças. Teceu cordoalhas para o seu navio. Mas o chaveiro do sonho
pegou-lhe a canção... E fêz um vento longo e triste.
E eu pensava que tôda a minha
tristeza vinha apenas do vento, da solidão do mar, da incerteza daquela viagem
num navio perdido...
* * *
“Sapato Florido” – Editora Globo,
Porto Alegre, 1948
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