CRIATIVIDADE
Desconfiar
da observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da vida – esse
atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É melhor esperar que a poeira
baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva de memória. Porque a
memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica
mais perto da verdadeira realidade.
DRÁCULA E OS PESQUISADORES
O
que chateia nos filmes de vampiros não são os ditos vampiros – em geral uns
verdadeiros amores no gênero – mas aqueles dois indefectíveis personagens: um
que acredita em tudo e outro que não acredita em nada... Falta-lhes o espírito
de disponibilidade – que talvez não seja apenas uma característica do homem
moderno, e sim do homem eterno. Ou, no mínimo do leitor inteligente.
SONHANDO ACORDADO
Releitura
das Crônicas marcianas – excusado
dizer que de Ray Bradbury – que deixam em nosso espanto um travo de tristeza e
de esperança. Um livro que não passará – como tantos outros de FC, porque
Bradbury, poeta que é, desdenha o laborioso cientificismo de seus colegas, logo
ultrapassado, na realidade, pela técnica alucinante do homo sapiens... não! do homo
faber. Seja como for, a demanda de sonho lúcido da parte dos leitores
provocou nos países de língua inglesa essa avalanche de FC em que eu e muita
gente boa somos arrastados. Mas o fato é que as obras de ficção científica são
o que de melhor e pior tem produzido a literatura estadunidense de nossos dias.
O que importa, afinal, é este sonho aberto a todos os problemas. E, como diria
agora o meu velho amigo Hamlet, há algo de sadio no reino da Dinamarca...
NOSTALGIAS
Há
tempos escrevi este decassílabo nostálgico:
“Acabaram-se
os bondes amarelos!”
Tão
nostálgico que até hoje ficou sozinho esperando o resto dos companheiros.
Também,
não faz muito, escrevi este outro decassílabo:
“Acabaram-se
as tias solteironas...”
Talvez
esses dois solitários se venham um dia a reunir num mesmo poema.
Têm
ambos o mesmo ritmo. Causam ambos o mesmo nó na garganta que me impede de os
continuar.
Talvez
o poema já esteja pronto... e ninguém notou. Nem eu!
Porque
ele próprio se completou, cada verso chorando no ombro do outro... E sem mesmo
notar que eram decassílabos!
AS PERSONAGENS
Mas
que estarão cochichando, no vão daquela janela do Paço, o Bispo de Cochabamba e
o Conde de Biancamano?
Eu
devia saber, porque eles são personagens de um conto meu, realisticamente
fantástico. Mas nossas criações têm vida própria e quando pensam em nós é para
nos acusarem de suas insuficiências, do desmoronamento de suas ridículas
ambições.
Pensam
em nós? Nem isso: desconhecem até os nossos nomes e nos chamam de Destino, Acaso,
Azar, Fatalidade, Deus, o Diabo...
A PORTA
Quem
atravessa a porta da única parede de uma casa em ruínas é como se passasse para
o Outro Mundo.
DA INFLUÊNCIA DOS ESPELHOS
Tu
te lembras daqueles grandes espelhos de feiticeiro que certos proprietários
colocavam à entrada de seus estabelecimentos para atrair os fregueses,
achatando-os, alongando-os, deformando-os nas mais estranhas configurações?
Nós,
a miuçalha, achávamos uma bruta graça naquilo, bem sabíamos que era tudo
ilusão, embora talvez nem conhecêssemos o sentido da palavra “ilusão”.
Não,
absolutamente não éramos aquilo!
E
só muitos anos depois viríamos a descobrir que, para os outros, não éramos
precisamente isto que somos – mas aquilo que os outros vêem...
Cuidado,
incauto leitor! Há casos em que alguns acabam adaptando-se a essas imagens
enganosas, despersonalizando-se, para o resto da vida, num segundo “eu”.
O
eu dos outros...
Pois
que pode uma alma, ainda por cima invisível, contra o testemunho de milhares de
espelhos?
MAPA SECRETO
Na
mancha do pêlo das vacas o menino estuda a geografia de suas ilhas imaginárias.
LEITURA DINÂMICA
Essa
tão badalada novidade da leitura dinâmica é muito, muito antiga...
Quem
a inventou foi o vento, o único que a sabe praticar de verdade. Inveterado leitor
de tabuletas, ele não salta uma só que seja, não perde nenhuma delas. Lê e
passa, que o seu destino é passar, mas guarda uma lembrança vertiginosa de
todas, das vermelhas, das de azul mais forte, das verdes em todos os tons, sem
esquecer, ó Van Gogh, as tabuletas amarelas...
Por
que a maior dor do vento é não ser colorido.
Sabes?
Perpassa no vento a alma dos pintores mortos, procurando captar, levar (para
onde?) as cores deste mundo.
Que
este mundo pode ser que não preste, mas é tão bom de olhar!
*
* *
(“Porta
Giratória” – Editora Globo, São Paulo, SP, 1988)
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