Dois monólogos intercalados.
Tento em vão desatar um nó cego do meu sapato. Heloísa aconselha-me:
- Para desatar um nó cego basta pensar numa velha bem mexeriqueira.
Dito e feito! O nó desata-se.
- Em que pensaste? – indaga Elena.
- Ora, em quem mais havia de ser? Na tia Joaquina... A nossa querida tia Joaquina!
A propósito até inventei que a tia Joaquina, todas as noites, antes de adormecer, pergunta-se, como uma boa escoteira: “Será que hoje não esqueci de fazer o meu bom mexerico?”
Deus me perdoe, mas uma invenção não quer dizer que não seja verdadeira: às vezes uma anedota popular, atribuída a alguém, define-lhe mais o caráter do que qualquer testemunho objetivo.
Ora, ora! Estas mal traçadas eram para ser notas de viagem... e o leitor não podia adivinhar que vim a Buenos Aires para comprar livros e para uma visita prometida a Jorge Luís Borges. Ele não estava, fora fazer conferências em Tóquio e depois nos States, ninguém sabe ao certo.
Procuraram, os da embaixada, ensejar-me um encontro com Ernesto Sábato. Esquivou-se. Decerto confundiu-me com um repórter. Não sou repórter, as informações aborrecem-me, não acredito na observação direta, não sei o que fazer quando me apresentam a uma paisagem.
Mas foi um oásis a visita à Cidade das Crianças, idealizada por Perón. Tudo ali é feito na medida da pequena estatura da criançada e da sua imensurável fantasia. Vi ali mais uma das estátuas eqüestres do indefectível general San Martín. Mas em miniatura, cavalo e cavaleiro. Ele, o general, tinha a altura de um menino de oito anos. Assim, sim!
Outro oásis: o reencontro com Berta Singerman, ainda em plena atividade no palco, com aquele seu velho sonho, tão bem realizado: ser o elo de ligação entre a poesia e o povo. Pois o povo não tem tempo ou não tem meios para comprar livros, ou simplesmente não tem o hábito da leitura.
Este o sonho de Berta: a comunicação oral da poesia, ante milhares de pessoas (e não, como hoje, a poesia impressa, para leitura a sós, nos gabinetes), a poesia tal como se apresentava na Antigüidade e na Idade Média. E ainda hoje, nas regiões não alfabetizadas do Brasil, poetas do sertão cantam a sua poesia nos mafuás – quem foi que disse que o povão não gosta de poesia?
Os grilos são os poetas mortos...
Naqueles longes tempos, ele era vítima de um cirurgião-dentista que, de repente do outro lado da sala de café, da outra extremidade do bonde, da calçada oposta, lançava intempestivamente o seu vozeirão:
- Como vai a poesia?
Todas as cabeças que se achavam de permeio voltavam-se então para o Poeta. O Poeta, nu, desmascarado, em meio à multidão! Para evitar esses atentados ao pudor, ele afinal descobriu um meio de fazer a pergunta antes que o outro a fizesse. Mal avistava o dentista, e antes que o mesmo erguesse as trombetas da sua voz, que não soavam propriamente como as trombetas da Fama, mas como as cornetas fanhas da Difamação, bradava o alvissareiro Poeta:
- Como vai o maçarico?
As cabeças de permeio voltavam-se então escandalizadas ou irônicas para o cirurgião-dentista. Não porque fosse uma vergonha utilizar esse útil instrumento, mas porque maçarico era mesmo uma palavra muito engraçada, uma palavra que rimava com a dança do sarapico-pico-pico e com surubico. O resultado de tudo isso foi que os papéis se inverteram: o dentista pegou medo do Poeta.
As coisas que para nós se passam em câmara lenta, numa vida inteira, os Anjos as vêem em ritmo acelerado. E com certeza mal contêm o riso, como nós agora diante dos primeiros jornais cinematográficos: oh! aquelas paradas elétricas, aqueles enterros epiléticos, aqueles ministros, e reis, e povo, agitando-se automaticamente como bonecos a quem deram corda... Não, assim não há grandeza nem dignidade possível. Toda a epopéia napoleônica transcorrida, digamos, em um só quarto de hora, seria de um cômico e de um absurdo irresistíveis.
E as nossas vidas então, já por si tão ridículas?!
Que o leitor desculpe minha falta de não-sei-o-quê, mas lendo o livro de Erico Verissimo, Israel em abril, vejo ter-lhe ocorrido em 1966 em Tel-Aviv algo que eu lhe dissera em 1940 em Porto Alegre: “É um dia de inverno em Porto Alegre, há muito tempo”. O poeta está ao meu lado, olhando vago a gelada garoa cair sobre os telhados de nossa cidade. Estamos ambos deprimidos porque as tropas nazistas acabam de entrar em Paris.
O poeta tenta consolar-me e consolar-se, dizendo: “Nem os alemães, nem ninguém poderá jamais conquistar Paris, porque Paris não é uma cidade, mas um estado de espírito...”
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