Certa vez, tinha eu quinze anos, inventei uma história que principiava assim:
"A primeira coisa que os defuntos fazem, depois de enterrados, é abrir novamente os olhos".
Mas fiquei tão horrorizado com essa espantosa revelação que não me animei a seguir avante, e a história gorou no berço, isto é, no túmulo.
IDEAIS
Os outros meninos, um queria ser médico, outro pirata, outro engenheiro, ou advogado, ou general.
Eu queria ser um pajem medieval... Mas isso não é nada.
Hoje eu queria ser uma coisa mais louca: eu queria ser eu mesmo!
TABLEAU
Nunca se deve deixar um defunto sozinho. Ou, se o fizermos, é recomendável tossir discretamente antes de entrar de novo na sala.
Uma noite em que eu estava a sós com uma dessas desconcertantes criaturas, acabei aborrecendo-me (pudera!) e fui beber qualquer coisa no bar mais próximo. Pois nem queira saber... Quando voltei, quando entrei inopinadamente na sala, estava ele sentado no caixão, comendo sofregamente uma das quatro velas que o ladeavam! E só Deus sabe o constrangimento em que nos vimos os dois, os nossos míseros gestos de desculpa e os sorrisos amarelos que trocamos...
AZAR
Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes falavam.
Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem.
DO MANUAL DO PERFEITO CAVALHEIRO
Cuidado!
Deves tocar a campainha tão suavemente como se tocasses o umbigo da dona da casa.
RECEPÇÃO
No Céu vou ser recebido com uma banda de música. E os anjinhos estarão vestidos no uniforme da banda, com os sovacos bem suados e os sapatos apertando.
DRÁCULA
Quando me encontrei com o Conde Drácula, por uma dessas noites de inverno, na Esquina dos Ventos Uivantes, tinha ele um aspecto de um grande guarda-chuva de varetas quebradas. Foi o que eu lhe disse. Ele deu meia-volta e partiu revoando, aos solavancos, decerto para quebrar a cara do diretor do filme...
NO CÉU
No Céu é sempre domingo. E a gente não tem outra coisa a fazer senão ouvir os chatos. E lá ainda é pior do que aqui, pois se trata dos chatos de todas as épocas do mundo.
COISAS DESTE MUNDO
"Deixe de lado as coisas deste mundo" – disse o padre ao moribundo. O moribundo, então, virou as costas para o padre.
* * *
("Sapato Furado", Editora Global, 6ª edição, SP, 2006)
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