O SILÊNCIO
Há um grande silêncio que está sempre à escuta...
E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!
E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta...
e cala.
A CANÇÃO DO MAR
Esse embalo das ondas
Das ondas do mar
Não é um embalo
Para te ninar...
O mar é embalado
Pelos afogados!
O canto do vento
Do vento do mar
Não é um canto
Para te ninar...
São eles que tentam
Que tentam falar!
Tiveram um nome
Tiveram um corpo
Agora são vozes
Do fundo do mar...
Um dia viremos
Vestidos de algas
Os olhos mais verdes
Que as ondas amargas
Um dia viremos
Com barcos e remos
Um dia...
Dorme, filhinha...
São vozes, são vento, são nada...
ELEGIA NÚMERO ONZE
Não, não é uma série de pontos de exclamação
- é uma avenida de álamos...
E o que, e para quem, clamariam então?!
Deserta está a cidade.
Todas as avenidas, todas as ruas, todas as estradas atônitas
se perguntam se vêm ou se vão...
Em nada lhes poderiam servir esses postes de quilometragem:
estão apenas desenhados, como num mapa.
Ah, se houvesse uns passos, ainda que fossem solitários...
Se houvesse alguém andando sozinho... e bastava!
São os passos
- são os passos que fazem os caminhos.
Deserta está a cidade.
Se houvesse alguém andando sozinho
- para ele se acenderiam então, como um olhar,
todas as cores!
Porque a cidade está cega, também.
O que não é visto por ninguém
não sabe a cor e o aspecto que tem.
A cidade está cega e parada com a descor de um morto.
Porque tudo aquilo que jamais é visto
- não existe...
SE O POETA FALAR NUM GATO
Se o poeta falar num gato, numa flor,
num vento que anda por descampados e desvios
e nunca chegou à cidade...
se falar numa esquina mal e mal iluminada...
numa sacada... num jogo de dominó...
se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo que morriam de verdade...
se falar na mão decepada no meio de uma escada de caracol...
Se não falar em nada
e disser simplesmente tralalá... Que importa?
Todos os poemas são de amor!
SURPRESAS
Sabes? Os cabelos da morte são entrelaçados de flores.
Não de flores mortas como essas inertes sempre-vivas,
Mas inquietas e misteriosas como os não desfolhados malmequeres
Ou bravias como as pequenas rosas silvestres.
As mãos da morte, as suas mãos não têm anéis,
Sua virgem nudez não comporta o peso de uma jóia,
Os seus olhos não são, não são uns covis de treva,
Mas cheios de luz como os olhos do primeiro amor.
Porque a morte não faz esquecer, mas faz tudo lembrar,
Porque a morte não é, não é um sono eterno:
Tu vais adormecer como num berço, pouco a pouco,
E acordarás de súbito, num vasto leito de noivado!
(Esconderijos do Tempo – Ed. Globo, São Paulo, 1995)
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