Se nunca nasceste de ti mesmo, dolorosamente, na concepção de um poema... estás enganado: para os poetas não existe parto sem dor.
RECATO
Um morto volta sempre para a primeira reunião familiar. E sorri, entre aliviado e agradecido, quando descobre que estão falando noutras coisas.
PARAÍSOS
As religiões cresceram entre os humildes porque aqueles que estavam por cima já se julgavam no paraíso.
DE LEVE
Será que uma verdadeira sociedade precisa mesmo de cronista social?
A VERDADE DA FICÇÃO
São Jorge, o cavalo, o dragão... eu sempre fui, já não digo um devoto, mas um fã dos três. São Jorge, eu soube, foi cassado. É verdade que andava metido em tudo que era religião... mas que culpa tinha ele de ser bonito e ecumênico? Porém ao passo que São Jorge era dessantificado, ressuscitava-se o Diabo, retirando-o do domínio do folclore a que o relegara o povo. Mas e o dragão? O dragão não representa o mal, isto é, o Diabo? Alega-se que São Jorge nunca existiu. Ora, naquela imagem que, de tanto a vermos desde a infância, fazia parte da nossa sensibilidade, o dragão era também uma figura simbólica. Porém existe... Naquela bela imagem, pois, resta-nos agora o cavalo e o dragão. Luta desigual. Foi-se o cavaleiro andante do Bem.
É como que nos ficou faltando um estímulo, um exemplo, uma esperança.
O que nos faz lembrar aquele outro cavaleiro andante, Dom Quixote – outro símbolo. Que nunca existiu, é claro. Mas como vive!
PODER DE SÍNTESE
Um dia, Madame de Sevigné sentenciou: "O café passará, como Racine". Ah, que poder de síntese, minha cara Madame! Como foi que a senhora conseguiu dizer duas barbaridades numa única frase?
Poder de síntese, esse o tinha, de fato, Racine, quando, para darmos apenas um exemplo, conseguiu expressar a paixão, a crueldade, a complexidade do caráter de Nero num só verso de doze sílabas: "J'aimais jusqu'à sés pleurs, que je faisais couler!" (Eu amava até as suas lágrimas, que eu fazia correrem!)
Sim, porque o verdadeiro sádico ama verdadeiramente a quem faz sofrer. Que o digam esses pretensos casais desunidos, que jamais conseguem separar-se. Só os sádicos, pergunto eu? Recordemos aquelas palavras de Oscar Wilde, na Balada do Cárcere: "A gente sempre mata aquilo a que ama; os fortes com um punhal, os covardes com um sorriso".
Aliás, o Nero do alexandrino raciniano já tinha decretado a morte da sua amada, cujas lágrimas agora tanto o enterneciam.
Haverá os santos do inferno? Nero deverá ter sido um deles...
Porque na verdade é idêntico o nosso pasmo, quase incrédulo, tanto ante a vida de Nero como ante a vida de São Francisco de Assis. Porque os extremos sempre se tocaram. Porque os Santos – no seu prodigioso arrebatamento – são uma espécie de celerados do Bem.
("A Vaca e o Hipogrifo", Editora L&PM, Porto Alegre, 1979)
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