ELEGIA
Há coisas que a gente não sabe nunca o que fazer com elas...
Uma velhinha sozinha numa gare.
Um sapato preto perdido do seu par: símbolo
Da mais absoluta viuvez.
As recordações das solteironas.
Essas gravatas
De um mau-gosto tocante
Que nos dão as velhas tias.
As velhas tias.
Um novo parente que se descobre.
A palavra “quincúncio”.
Esses pensamentos que nos chegam de súbito
nas ocasiões mais impróprias.
Um cachorro anônimo que resolve ir seguindo a gente
pela madrugada na cidade deserta.
Este poema, este pobre poema
Sem fim...
CANÇÃO
Cheguei a concha da orelha
à concha do caracol.
Escutei
vozes amadas
que eu julgava
eternamente perdidas.
Uma havia
que dentre as outras mais graves
tão clara e alta se erguia...
que eu custei mas descobri
que era a minha própria voz:
sessenta anos havia
ou mais
que ali estava encerrada.
Meu Deus, as coisas que ela dizia!
as coisas que perguntava!
Eu deixei-as sem resposta.
As outras vozes, mais graves,
tampouco
nenhuma lhe respondia.
O mundo é um búzio oco,
menino...
Mundo de vozes perdidas
e onde apenas o eco
eternamente
repete as mesmas perguntas.
A ALMA E O BAÚ
Tu que tão sentida e repetida e voluptuosamente
te entristeces e adoeces de ti,
é preciso rasgar essas vestes de dó,
as penas é preciso raspar com um caco,
uma por uma: são crostas...
E sobre a carne viva
nenhuma ternura sopre.
Que ninguém acorra.
Ninguém, biblicamente, com os seus bálsamos e olores...
Ah, tu com as tuas cousas e lousas, teus badulaques,
teus ais ornamentais, tuas rimas,
esses guizos de louco...
A tua alma (tua?) olha-te, simplesmente,
Alheia e fiel como um espelho.
Por supremo pudor, despe-te, despe-te,
quanto mais nu mais tu,
despoja-te mais e mais.
Até a invisibilidade.
Até que fiquem só espelho contra espelho
num puro amor isento de qualquer imagem.
- Mestre, dize-me... e isso tudo valerá acaso a perda de meu baú?
CANÇÃO DE INVERNO
O vento assovia de frio
nas ruas da minha cidade
enquanto a rosa-dos-ventos
eternamente despetala-se...
Invoco um tom quente e vivo
- o lacre num envelope? –
e a névoa, então, de um outro século
no seu frio manto envolve-me...
Sinto-me naquela antiga Londres
onde eu queria ter andado
nos tempos de Sherlock – o Lógico
e de Oscar – o pobre Mágico...
Me lembro desse outro Mário
entre as ruínas de Cartago,
mas só me indago: - Aonde irão
morar os nossos fantasmas?!
E o vento, que anda perdido
nas ruas novas da Cidade,
ainda procura, em vão,
ler os antigos cartazes...
("Apontamentos de História Sobrenatural" – 2ª Edição, Editora Globo, Porto Alegre, 1977)
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