Pitangas só têm graça colhidas no mato e saboreadas na hora – se é que ainda existem matos e pitangas. E nem desconfiávamos de que aquele ardente frescor, ao serem esmagadas, era a nossa primeira volúpia.
E havia os figos que se entreabriam mostrando os seus mistérios.
E a carnação dos pêssegos, então? Não, nós não os devorávamos propriamente... Era puro, puro amor!
Respondendo a Regina
De alguém que se assina “Regina”, recebo amável carta, reclamando que a poesia se está ausentando ultimamente das minhas crônicas, em proveito do lado humorístico da vida... Fiquei desapontado, Regina. Primeiro, porque pensava que andasse escrevendo coisas muito sérias, inspiradas como eram, precisamente, no lado amargo da vida... Depois, porque pensava que a poesia estivesse nas entrelinhas, como aliás acontece na vida...
Além disso, pela sua carta, quer-me parecer que não pertence ao número das pessoas que pensam que há assuntos “poéticos” e outros não, como também um estilo que possua a exclusividade de ser “poético”... E, precisamente pelo estilo de sua carta, vejo que tampouco pertence à escola literária daquela professorinha do interior que me disse um dia:
- O senhor não imagina como estamos... como “eu” estou contente com a sua visita à nossa cidade!
E, confidencialmente:
- Aqui a gente não tem com quem falar difícil...
Compensação
Lembro que certa vez encontrei com seu Zé na rua. Como bons gaúchos, paramos, relinchamo-nos, abraçamo-nos:
- Há quanto tempo!
- O senhor está morando agora aqui na minha zona, seu Zé?
- Sim, na rua Castro Alves.
- Ah! – observei - esta é uma zona de poetas. Há também a rua Casemiro de Abreu...
Seu Zé, aprovativamente, abre um amplo sorriso com um dente sim outro não:
- E tem também o tal de Vasco da Gama!
Quer dizer que, de todas as andanças do grande navegador, apenas sobrou, na memória do povo, o seu nome. E sobrou como poeta.
Pois não é isso uma grande e significativa compensação, um consolo? Não sei se para Vasco da Gama o será... mas para os poetas, é.
No Ano Passado
Já repararam como é bom dizer “o ano passado”? É como quem tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem... Tudo, sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse “tudo” se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraordinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado, deparei com um despacho da Associated Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:
“Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados”.
Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...
Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição – morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova. Por essas e por outras é que, nestas calçadas claras do ano bom:
Rechinam meus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!
Tinha um surrão todo de penas cheio
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram... esvoaçaram no ar...
Todo de Deus me iluminei então,
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
“Como é possível sem doutrinação?!”
Mas entendem-me o Céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
“Olha! É o Idiota desta Aldeia!” dizem...
(“Porta Giratória” – Editora Globo, SP, 1988)
Nenhum comentário:
Postar um comentário