DA PREGUIÇA COMO MÉTODO DE TRABALHO
Cantinflas
É sabido como o estilo
Cantinflas tem influenciado a literatura.
Isso, porém, não é motivo
para a dublagem de seus filmes em português. Pois não há quem não reconheça
como a voz faz parte de uma personalidade. Ainda mais no caso daquele meu
ilustre xará.
E a Greta Garbo, então?
Vocês já a imaginaram falando com voz de falsa grã-fina carioca? Se ao menos
fosse a voz de uma gaúcha...
Acontece também que o
público está acostumado a ler os letreiros nas telas. Vou mais longe, digo que
foi esse mesmo público o verdadeiro inventor da tão badalada leitura dinâmica.
Tirar aos aficionados do
cinema a sua costumeira leitura-relâmpago é fazer sabotagem à campanha do
Mobral – pois abriríamos as salas de projeção exatamente a esses a quem se
deveria convencer, antes de tudo, que o analfabetismo é uma porta fechada.
Dezessete pastéis de Santa Clara
Sim, morreu o Procópio.
Um artista de palco morre mesmo. Os do cinema ficam enlatados e podem
ressuscitar a qualquer momento. Quando em Paris foram exibidos os primeiros
filmes, um jornalista escreveu esta manchete genial: “Morte, onde está a tua
vitória? Já existe o cinema!”. A vida que um ator assume no palco é tanto mais
pungente por ser tão efêmera como o papel que nos coube na vida.
A primeira vez que me vi
cara a cara com Procópio foi na confeitaria Central, onde, por acaso do vaivém
das gentes, fiquei a sós numa mesa com ele. Olhou-me sem dizer palavra,
evidentemente à espera de que eu lhe pedisse um autógrafo. Ora, eu era um
adolescente e haverá alguém mais orgulhoso do que um adolescente? Portanto,
nada lhe disse. Procópio, então, me pediu ironicamente um autógrafo. É verdade
que, quando éramos vários à mesa, ele havia devorado dezessete pastéis de Santa
Clara. Não sei se isso explica alguma coisa, mas quem nunca provou pastéis de
Santa Clara não sabe qual é o alimento dos anjos. Depois chegaram, ou voltaram,
outros anjos – perdão! outros amigos, o Dante Barone, o Casemiro, o Pelichek...
E o vaivém continuou na terra comono céu.
Commedia dell’amore
Quanta história a gente
inventa com a maior sinceridade – a história de que me quiseste, a história de
que te quis... Tudo foi comédia? Não. Um artista põe toda a alma que ele tem no
papel que representa. Por isso a gente é tão feliz... e tão desgraçada também.
Comunicação
O público ledor (existe
mesmo!) é sensorial: quer ter um autor ao vivo, em carne e osso. Quando este
morre, há uma queda de popularidade em termos de venda. Ou, quando teatrólogo,
em termos de espetáculo. Um exemplo: G. B. Shaw. E, entre nós, o suave fantasma
de Cecília Meireles recém está se materializando, tantos anos depois.
Isto apenas vem provar
que a leitura é um remédio para a solidão em que vive cada um de nós neste
formigueiro. Claro que não estou me referindo a essa vulgar comunicação festiva
e efervescente.
Porque o autor escreve,
antes de tudo, para expressar-se. Sua comunicação com o leitor decorre
unicamente daí. Por afinidades. É como, na vida, se faz um amigo.
E o sonho do escritor, do
peta, é individualizar cada formiga num formigueiro, cada ovelha num rebanho –
para que sejamos humanos e não uma infinidade de Xerox infinitamente
reproduzidos uns dos outros.
Mas acontece que há
também autores Xerox, que nos invadem com aqueles seus best-sellers...
Será tudo isto uma causa
ou um efeito?
Tristes interrogações
para se fazerem num mundo que já foi civilizado.
A indumentária
– Por que os fantasmas
sempre aparecem vestidos? Sendo a morte um segundo nascimento, por que não
surgem ao natural, tal como vieram a este mundo? Será que o Outro Mundo tem
desses puritanismos? Nada disso! É que os fantasmas ficam com vergonha de que a
gente descubra que as almas não têm sexo.
Pinacoteca de bolso
Ora pois, como eu me
queixasse a Waldeni Elias de que não disponho de paredes onde colocar suas
telas, enviou-me ele um quadrinho seu “que cabe exatamente na algibeira do teu
fato domingueiro”, conforme diz em sua carta. Aqui o tenho, pois, em seu estojo
protetor de pano, no bolso da minha roupa de todos os dias. E o mostro a todo
mundo. Que tela é para ver. Da mesma forma que poema é para ler. Menos para
explicar. “O belo e o inteligível sem reflexão.” Estas palavras são do velho
Kant. Se recorro antiquadamente a ele é porque francamente não sei qual é o
atual filósofo de passarela. O que está na moda citar. Só digo, portanto, que o
quadrinho é muito para ver e que Deus conserve sempre assim a Elias, esse nosso
querido e admirado pinta-mundos.
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“Da
Preguiça como Método de Trabalho” – 2ª edição 2007, 1ª reimpressão 2009,
Editora Globo S. A., SP
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