APONTAMENTOS DE HISTÓRIA SOBRENATURAL
POEMA OLHANDO UM MURO
Do
escuro do meu quarto
– imóvel como um felino, espio
a lagartixa imóvel sobre o muro: mal
sabe ela
da sua graça ornamental, daquele
verde
intenso
na lividez mortal
da pedra... ah, nem sei eu também o que
procuro, há tanto...
nesta minha eterna espreita!
Pertenço acaso à raça odiada dos
mutantes?
Ou
sou, talvez
– em meio às espantosas aparências de
algum mundo estranho –
um espião que houvesse esquecido o seu
código, a sua sigla, tudo...
– menos
a
gravidade da sua missão!
O MORITURO
Por que é que assim,
com suas caras móveis e simiescas,
os vivos nos devassam,
num cínico impudor?
Por que nos olham
assim – como se fôramos cousas –
quando os nossos traços
vão repousando, enfim,
na tranqüila dignidade
da morte?
Por que é que eles,
com a sua obscena curiosidade,
não respeitam o ato
mais íntimo de nossa vida
– ato que deveria ser
testemunhado apenas pelos Anjos?
Ah, que Deus me guarde
na hora de minha morte, amém,
que Deus me guarde da
humilhação desse espetáculo
e me livre de todos,
de todos eles:
não quero os seus
olhos pousando como moscas na minha cara.
Quero morrer na selva
de algum país distante...
Quero morrer sozinho como um bicho!
INSTRUMENTO
Impossível fazer um
poema
neste momento.
Não, minha filha, eu
não sou a música
– sou o instrumento.
Sou, talvez, dessas
máscaras ocas
num arruinado
monumento:
empresto palavras
loucas
à voz dispersa do vento...
AXIOMAS
Um ovo, um
cacto, um chafariz, um anjo de túmulo, um lampião é o único que existe. E um cavalo... ah, é verdadeiro porque é
único. Um poeta é o único poeta que existe no mundo. Deus é o Deus único e
verdadeiro.
DESCOBERTAS
Descobrir Continentes
é tão fácil como esbarrar com um elefante:
Poeta é o que encontra uma moedinha perdida...
ELEGIA
URBANA
Rádios. Tevês.
Gooooooooooooooooooooooolo!!!
(O domingo é um cachorro escondido debaixo da cama)
ESCADAS
Escadas de caracol
Sempre
São misteriosas:
conturbam...
Quando as desce, a
gente
Se desparafusa...
Quando a gente as sobre
Se parafusa
– o peito
estreito –
o teto descendo
Descendo descendo como
nas histórias de imortal horror!
Mas de que jeito,
Mas como pode ser,
Morrer cair rolar por
uma escada de parafuso?
Além disso não têm,
pelo que dizem, nenhuma acústica...
Oh! não há como as
escadarias daqueles antigos edifícios públicos
Para ser
assassinado...
Porém não fiques tão
eufórico,
– nem tudo são rosas:
Há,
No sonho das velhas
casas de cômodos onde moras,
Passos que vêm subindo
degrau por degrau em direção ao teu quarto
E “sabes” que é um
fantasma chamejante e fosfóreo
– o corpo todo feito
de inconsumíveis labaredas verdes!
O melhor
Mesmo
É fechar os olhos
E pensar numa outra
coisa...
Pensa, pensa
– o quanto antes!
Naquelas pobres
escadas de madeira das casas pobres
– escurinho dos teus
primeiros aconchegos...
Pensa em cascatas de
risos
Escada abaixo
De crianças deixando a
escola...
Pensa na escada do
poema
Que tu
comigo
vens descendo
agora...
(Hoje em dia todas as
escadas são para descer)
Mas não! este poema
não é
Nenhum
Abrigo
Antiaéreo...
Ah, tu querias que eu
te embalasse?!
Eu estava, apenas,
explorando uns abismos...
* * *
(“Apontamentos de História Sobrenatural” – Ed. Globo, Porto Alegre,
1977)
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