- SAPATO FLORIDO -
TRÁGICO ACIDENTE DE LEITURA
Tão cômodamente que eu estava lendo, como
quem viaja num raio de lua, num tapête mágico, num trenó, num sonho. Nem lia:
deslizava. Quando de súbito a terrível palavra apareceu, apareceu e ficou,
plantada ali diante de mim, focando-me: ABSCÔNDITO. Que momento passei!... O
momento de imobilidade e apreensão de quando o fotógrafo se posta atrás da
máquina, envolvidos os dois no mesmo pano prêto, como um duplo monstro
misterioso e corcunda... O terrível silêncio do condenado ante o pelotão de
fuzilamento, quando os soldados dormem na pontaria e o capitão vai gritar:
fogo!
EXEGESE
- Mas que quer dizer êsse poema? -
perguntou-me alarmada a boa senhora.
- E que quer dizer uma nuvem? - retruquei
triunfante.
- Uma nuvem? - diz ela. - Uma nuvem umas
vêzes quer dizer chuva, outras vêzes bom tempo...
PERVERSIDADE
Alarmar senhoras gordas é um dos maiores
encantos desta e da outra vida.
FATALIDADE
Em todos os velórios há sempre uma senhora
gorda que, em determinado momento, suspira e diz:
- Coitado! Descansou...
QUIEN SUPIERA ESCRIBIR!
O menino de joelhos sujos que chega em casa
correndo e mal pode falar...
A velha dama que é agora obrigada a fazer
renda para vender... de casa em casa, a coitada!... e que senta na ponta da
cadeira, suspira discretamente e murmura: “A minha vida é um romance...”
Aquela moça que diz: “Não quero ouvir isto!”
e tapa os olhos...
Ah, quanta coisa deliciosamente quotidiana,
quanto efêmero instante, eu não gravaria para sempre na memória dos homens,
se...
DA DÚVIDA
Felizmente parece que o Além não resolve
coisa alguma, e a confusão continua a mesma, senão maior... Posso, pois, morrer
descansado e levar os meus probleminhas comigo, que não me faltará distração.
Não me refiro à quadratura do círculo, que pouco se me dá, nem ao moto contínuo.
Penso é nas mil e uma perplexidades da minha condição de escriba, nesses
cruciantes imponderáveis, no eterno problema da subjetividade do pronome se...
DO TEMPO
Nunca se deve consultar o relógio perto de
um defunto. É uma falta de tato, meu caro senhor... uma crueldade... uma
imperdoável indelicadeza...
INTERCÂMBIO
Vovô tem um riso de cobre – surdo, velho,
azinhavrado – um riso que sai custoso, aos vinténs.
Mas Lili, sempre generosa, lhe dá o trôco
em pratinhas novas.
A PRINCESA
Quando lhe perguntaram o nome, Lili
espantou-se muito:
- Ué! Mas todo o mundo sabe...
O CACHORRO
Do quarto próximo, chega a voz irritada da
arrumadeira:
- Meu Deus! a gente mal estende a cama e já
vem êsse cachorro deitar em cima! Salta daí pra fora!
E Lili, muito formalizada:
- Finoca! o “cachorro” tem nome!
DA HUMILDE VERDADE
O quotidiano é o incógnito do mistério.
MUDANÇA DE TEMPERATURA
Nos fios telegráficos pousaram uma, duas,
três, quatro andorinhas.
Olham de um lado e outro... Irão
partir?
Sôbre as cêrcas rasas do arrabalde, os
girassóis espiam como girafas...
* * *
“Sapato Florido” – Editora Globo,
Porto Alegre, 1948
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