PEQUENO POEMA DIDÁTICO
O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra
o vento incerto e vário.
A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A
mais inconseqüente conversa.
Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas
as horas são horas extremas!
ARQUITETURA FUNCIONAL
Para Fernando Corona e Antonieta Barone
Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas
velhas
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero
dizer essas assombrações vulgares
Que andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil!
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da
alma... Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino
e é preciso
(Como bem sabemos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo das outras pessoas
da casa,
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os profetas estão sempre profetizando
outras cousas...)
E as casas novas não têm ao menos
aqueles longos, intermináveis corredores
Que
a Lua vinha às vezes assombrar!
OLHO AS MINHAS MÃOS
Olho as minhas mãos: elas só não são
estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito
distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas
do fundo do mar...
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras!
Só apanho, porém, com elas, esse
alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai
secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem
cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: “existo”.
Porque apenas existem...
Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera
os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela do
mar
Foi este o fim da Criação!
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão
velhos sonhos?
Quem
faz – em mim – esta interrogação?
POEMA
O grilo procura
no escuro
o
mais puro diamante perdido.
O grilo
com as suas frágeis britadeiras de vidro
perfura
as
implacáveis solidões noturnas.
E se o que tanto buscas só existe
em
tua límpida loucura
–
que importa? –
isso
exatamente isso
é
o teu diamante mais puro!
CUIDADO!
Nós somos gestantes da alma... Cuidado!
É preciso muito, muito cuidado
Para que a alma possa nascer normal na
outra vida.
Nesta, ela mal pode, ela quase não tem
tempo de ficar pronta!
Como é possível, com esses cuidados e
mais cuidados sem conta,
Ah, toda essa vergonha de sermos
devorados
– meticulosamente – por milhões de ratos
durante sessenta, setenta, oitenta anos
Quando bem poderia surgir de súbito o
nobre leão da morte
Na plenitude nossa
Como acontece com os heróis da Ilíada,
Mas os heróis só morrem – no País da
Ilíada –
Belos e jovens...
Aqui, qualquer heroísmo se desmoraliza
dia a dia
como a barba do Tempo arrancada, fio a fio, das folhinhas...
Como é possível, como é possível uma
alma triturada
assim pelos relógios?
Como é possível nascer com um barulho
destes?
* * *
(“Apontamentos de História Sobrenatural”
– Ed. Globo, Porto Alegre, 1977)
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