LAGOSTA À MODA FRANCESA
Aos domingos, como os meus remanescentes amigos costumam passar fora o fim de semana e como este tem por finalidade, não confessada, exatamente essa espécie de ascese que é a gente livrar-se durante um dia e meio dos amigos, fico com o dia em branco e devoro literalmente os jornais. Desde os pequenos anúncios, onde encontro coisas deliciosamente assim: “Alugam-se duas salas para senhoras bem arejadas” – até seções dedicadas ao lar. Ora, na última destas, li e reli:
“LAGOSTA À MODA FRANCESA – Ponha a lagosta, para cozinhar, num molho de escabeche bem grosso: deixe esfriar no próprio líquido em que foi cozida. Separe então a carne da lagosta, deixando intacta a carapaça da mesma. Reserve alguns pedaços mais bonitos e pique o resto para fazer um guisado. Refogue na manteiga, junte um pouco de Vinho do Porto e ligue tudo a um molho bem temperado. Recheie com essa carne a carapaça da lagosta, arrume dentro de uma fôrma, regue com um pouco mais de molho e leve ao forno para dourar, sem deixar no entanto ressecar por cima”.
Isto é de a gente ficar com água na boca... E também é de amargar! Como é que a dona-de-casa, que não conhece nem um democrático sirizinho, vai conseguir a imperial lagosta?
Isto não pode ser.
É verdade que há gente que pode...
Mas não são os da soçaite nem os marginais que formam a classe média nacional, composta de honrados e suados barnabés. Dos marginais, nem é bom falar, porque isso nunca deixa de provocar na gente uma espécie de remorso de fundo coletivo... Quanto à “gente bem”, são como que o haut fond da sociedade, como o dizia um amigo meu, em contraposição aos bas fond. O que aliás não é implicar com ninguém.
Também esclareça-se que não implico com as lagostas. A lagosta é dos poucos bichos que a gente pode ver inteiros antes de deglutir. Aquela sua armadura medieval e o seu e o seu aspecto heráldico, pois deve ter nascido para animal de brasão, tal como o nobre e irreversível hipocampo, aquele seu aspecto puramente decorativo não me constrange à mesma situação de quando fui enfrentar, há dias, uma cabeça de porco assado. Meu Deus, aquele sorriso, aquela sua face, aquilo tudo tão humano me provocou uma inibição impossível de dominar...
E, dentro dessa mesma exemplificação de sentimentalismos gastronômicos, sei de uma boa senhora que não podia comer galinhas a quem “conhecia pessoalmente”, do seu terreiro. Apenas saboreava as que provinham anonimamente do mercado público.
Pois bem, meus ricos leitores, não sou, como vistes, contra lagostas e outros acepipes: isto seria levar muito longe a solidariedade democrática...
O que acontece comigo é que – com perdão da irreverência da comparação – penso como o apóstolo São Paulo, o qual, agradecendo numa de suas epístolas o auxílio financeiro que lhe haviam mandado alguns discípulos, respondeu-lhes que aproveitaria bem o dinheiro, visto que tanto estava acostumado a passar bem como a passar mal... Ótimo! Eis aí um grande santo que era também grandemente humano.
RETRATO
... aquele renomado economista, com a sua cara compenetrada de ovo choco...
A LEITURA INTERROMPIDA
O tempo corre por entre nossos dedos como água – diz um personagem, aliás muito sábio (e ainda por cima imperial) de um livro de William Golding que estou lendo para enganar outros cuidados. Pergunto-me: por que diz ele que o tempo corre como água e não como areia? E por que não correria como o vento, que leva, sobre a areia e a água, a vantagem de ser invisível e impalpável como o próprio tempo? Essas comparações permutáveis são uma denúncia de truque poético. Não importa que o livro de Golding seja em prosa: quem faz comparações está fazendo poesia. Essa permutabilidade nota-se não raro nos versos crioulos, com as suas imagens obrigatoriamente regionais:
“Do potreiro de teus olhos
Nunca mais me apartarei”.
Mas porque não da mangueira de teus olhos ou, melhor ainda, da querência de teus olhos?
Poesia, mesmo, é quando a imagem é insubstituível, como o fez Garcia Lorca, na Ode a Walt Whitman, ao retratar em seu verso inicial a figura do poeta:
“Viejo lindo como La nieve!”
TRISTE HISTÓRIA
Há palavras que ninguém emprega. Apenas se encontram nos dicionários como velhas caducas num asilo. Às vezes uma que outra se escapa e vem luzir-se desdentadamente, em público, nalguma oração de paraninfo. Pobres velhinhas... Pobre velhinho!
* * *
(“Porta Giratória” – Editora Globo, São Paulo, SP, 1988)
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